Dias atrás, fui convidada a palestrar em um congresso da Associação Paulista de Supermercados (Apas) sobre a importância da boa governança nas empresas familiares. Em um dos painéis, destaquei a relevância de se fazer um planejamento prévio diante das novas mudanças propostas pela Reforma do Código Civil, especialmente no que diz respeito ao Direito de Família. A discussão mostrou o quanto esse tema extrapola o campo jurídico: trata-se de longevidade e sustentabilidade empresarial.
O Brasil está prestes a passar por uma das maiores revisões legislativas das últimas décadas. O Código Civil de 2002, que molda as relações familiares, contratuais e patrimoniais do país, está em ampla atualização. O movimento é necessário – afinal, o mundo mudou, e com ele as estruturas familiares, os modelos de gestão e os valores que sustentam o tecido social.
Como conselheira e advogada que há anos atua junto a famílias empresárias, vejo esse momento com entusiasmo e cautela. Entusiasmo pelo avanço em temas como autonomia privada, liberdade testamentária e simplificação da partilha. Cautela porque mudanças dessa magnitude precisam considerar a realidade das empresas familiares brasileiras – muitas ainda amadurecendo na profissionalização e na separação entre afetos e negócios.
PONTO SENSÍVEL – A sucessão familiar é um dos pontos mais sensíveis. Estima-se que cerca de 80% das empresas brasileiras sejam familiares, e boa parte enfrenta dificuldades na passagem de comando. A Reforma do Código Civil pode ser uma aliada, desde que venha acompanhada de planejamento, governança e diálogo entre gerações.
Entre os tópicos em discussão, destacam-se a ampliação da liberdade testamentária, a revisão do regime de bens e a simplificação dos inventários e partilhas. São mudanças que, na teoria, trazem agilidade e autonomia, mas que podem acentuar conflitos se não houver regras de convivência bem estruturadas e papéis definidos nos conselhos de família e administração.
O conselheiro, especialmente o que atua em empresas familiares, passa a ter papel ainda mais estratégico. A reforma transfere parte da segurança jurídica para dentro das famílias e empresas, o que torna o dever de planejar e prever essencial. Protocolos familiares, acordos de sócios, holdings e testamentos precisarão ser revisitados à luz das novas normas, com foco em proteger o patrimônio e o legado.
OBSTÁCULO – Com frequência, percebo que o maior obstáculo não está nas cláusulas contratuais, mas nas relações interpessoais. A sucessão exige preparo emocional, não apenas jurídico. Uma empresa familiar que não fala sobre futuro, não planeja. E o conselho é o espaço ideal para esse diálogo: é ali que se equilibram gerações, se discutem valores e se projetam cenários.
A Reforma do Código Civil deve ser vista não apenas como um conjunto de mudanças legais, mas como uma oportunidade de evolução cultural e de governança. Ela convida as famílias empresárias a revisarem seus pactos e a estabelecerem novas formas de convivência e decisão.
Nenhuma lei, por mais moderna que seja, substituirá o diálogo transparente e o compromisso com o legado. Cabe aos conselheiros – que enxergam além dos números – ajudar as famílias a compreender que planejar é um ato de cuidado, e que governança é a base da continuidade.
A reforma ainda está em debate, mas já traz um recado claro: o futuro das empresas familiares dependerá menos da rigidez da lei e mais da qualidade das relações internas. É aí que a boa governança mostra sua força – transformando heranças em projetos de futuro e sucessores em guardiões de propósitos. Um bom planejamento sucessório, aliado a boas práticas de governança, é um selo de longevidade e perenidade nas companhias.
SANDRA COMODARO
Administradora, advogada, conselheira de empresas e fundadora do Grupo Conselheiras.
Fonte Oficial: https://agenciadcnews.com.br/artigo-por-sandra-comodaro-a-reforma-do-codigo-civil-e-o-desafio-da-sucessao-familiar/