Especial para o JC*
A guerra tarifária deflagrada em abril pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, deve acelerar mudanças no cenário geopolítico mundial. A curto prazo, as barreiras comerciais podem causar prejuízo de até US$ 1 trilhão à economia mundial em 2026. A médio prazo, as tarifas devem reorganizar as cadeias produtivas da indústria multinacional. A longo prazo, o tarifaço deve fragmentar o comércio internacional, o que pode causar perdas de até US$ 5,7 trilhões até 2030. Tudo isso tende a diminuir ainda mais a dominância do dólar em reservas internacionais e em pagamentos entre países fora do eixo EUA-Europa.
O impacto mais imediato da guerra tarifária deflagrada pelos Estados Unidos em abril será um prejuízo de até US$ 1 trilhão na economia global no biênio 2025-2026. Segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI), esse deve ser o custo da desaceleração do crescimento econômico mundial de 3% para 2,2% até 2026. Após o choque inicial, as barreiras tarifárias que se mantiverem após os acordos comerciais com os EUA devem reorganizar a cadeia industrial espalhada pelo mundo.
Em 2 de abril, em uma coletiva na Casa Branca, o presidente Donald Trump apresentou uma tabela com as tarifas cobradas de produtos importados de outros países. Os percentuais oscilaram ao longo dos meses e chegaram a ser os maiores em um século nos Estados Unidos. A segunda maior economia do mundo, a China, foi o principal alvo: os importadores norte-americanos chegaram a pagar 145% em abril e 30% em maio para importar produtos chineses.
A principal justificativa de Trump foi o esforço para reindustrializar os Estados Unidos – visto que as maiores empresas multinacionais, inclusive as estadunidenses, transferiram suas instalações para a China nas últimas décadas. Segundo a Organização Mundial do Comércio (OMC), os EUA eram responsáveis por 27,8% da produção industrial no mundo em 1970. Esse número caiu para 15,3% em 2022. Por outro lado, a participação chinesa na produção industrial cresceu de 12,6% para 31,9% entre 2002 e 2022.
Diante deste cenário, o recado de Trump para os líderes de outras nações e os gestores de multinacionais não poderia ter sido mais claro. “Se vocês querem que as suas tarifas sejam zero, é só fabricar os seus produtos nos Estados Unidos, porque não há tarifas para quem produz aqui”, Trump foi aplaudido pelos aliados que o assistiam no jardim da Casa Branca.
O professor de Economia da Ufrgs André Cunha projeta que, a curto prazo, as tarifas causarão a desaceleração da economia global, muita volatilidade no mercado financeiro e pressões inflacionárias em diversos produtos. Mas, à medida que mais acordos comerciais forem firmados com os EUA, as empresas multinacionais devem repensar suas cadeias produtivas espalhadas por diversos países. A negociação com a China deve ter maior impacto, porque hoje o maior parque industrial do mundo está em território chinês.
“Os tomadores de decisões aguardam um pouco antes de, por exemplo, fechar todas as plantas da sua empresa na China para reabri-las no México ou nos EUA. Essas decisões têm custos altíssimos. Portanto, os agentes empresariais tendem a aguardar os desdobramentos das tarifas e das negociações para ter uma noção mais clara dos custos”, pondera Cunha.
Contudo, o professor da Ufrgs acredita que será difícil atrair certas empresas de volta para os EUA – especialmente as de tecnologia. “A maioria das empresas norte-americanas investiram massivamente na China, onde elas lucram justamente porque a infraestrutura é melhor, a tecnologia industrial é superior, a mão de obra é mais eficiente. Além disso, a China domina o fornecimento de metais raros, essenciais para a produção de aparelhos eletrônicos. Então, existe uma questão estrutural que dificulta a volta dessas empresas para os EUA”, compara.
Brasil mira investimentos com cadeias produtivas fora da China
Embora as cadeias produtivas de produtos tecnológicos sejam mais dependentes da infraestrutura oferecida pela China, outras – como a automobilística – têm maior flexibilidade para instalar sua produção em países próximos à sua matriz ou ao mercado consumidor. As indústrias interessadas no mercado norte-americano podem trazer parte da sua produção para a América do Sul, América Central, México ou Canadá – lugares próximos dos consumidores finais, potencialmente com menores tarifas que a China e com custos de produção mais baixos que os Estados Unidos. Dependendo da tarifa final destinada ao Brasil – que variaram de 10% a 50% – o País pode se beneficiar desse processo.
O professor de economia da Ufrgs André Cunha lembra que, durante o primeiro mandato de Donald Trump nos Estados Unidos (2017-2021), o presidente estadunidense promoveu uma guerra tarifária contra a China em menor escala. A Organização Mundial do Comércio (OMC) calcula que, na primeira administração Trump, Washington impôs uma média de 19,3% em tarifas para a importação de produtos chineses. Pequim impôs 21,1% aos produtos importados dos EUA.
“Quando houve a primeira guerra tarifária, alguns países pegaram uma fatia do mercado norte-americano após Trump tarifar as importações chinesas. Entre os países que passaram a fornecer para o mercado norte-americano os produtos que eram oferecidos pelos chineses estão o México, Canadá, Vietnã, Coreia do Sul e Japão”, cita Cunha.
E prossegue: “Naquela ocasião, havia uma expectativa de que o Brasil pudesse atrair alguns investimentos no meio da confusão. Isso não aconteceu por causa do forte processo de desindustrialização pelo qual o País vem passando. Agora isso se desenha como uma possibilidade outra vez, mas ainda é um grande ponto de interrogação”, avalia o professor.
Por enquanto, o setor da economia brasileira com mais chance de se beneficiar da guerra tarifária é o agronegócio, porque, uma vez que concorre com a soja e proteína animal dos EUA, os produtores brasileiros podem passar a fornecer esses produtos para a China. “O Brasil é muito forte no agronegócio. Isso pode ser uma vantagem. Uma vez que as tarifas diminuem a venda de produtos agrícolas dos EUA para a China, o Brasil pode fornecer esses produtos para o mercado chinês e resolver o problema deles no médio prazo”.
Economia global enfrenta uma nova fragmentação
Se no curto prazo a guerra tarifária deve causar a desaceleração da economia e a reorganização das cadeias produtivas, no longo prazo as barreiras comerciais devem acelerar o processo de fragmentação da economia global em diferentes blocos econômicos. O problema é que, segundo estimativas publicadas no relatório de janeiro do World Economic Fórum (WEF), essa divisão pode causar perdas de até US$ 5,7 trilhões na economia global até 2030 – o que representaria uma diminuição de até 5% do PIB mundial em relação às projeções atuais.
Órgãos como a Organização Mundial do Comércio (OMC) e o Banco Central Europeu (BCE) já enxergam sinais de que a economia global está se dividindo em um bloco ocidental sob influência dos EUA, outro oriental sob influência da China, e outro neutro (do qual o Brasil faz parte). Conforme o BCE, os membros do bloco do Ocidente somariam 42% do PIB mundial; os do bloco do Oriente, 27%; e os neutros, 31%. Apesar do nome alusivo a diferentes regiões, os três blocos teriam integrantes em praticamente todos os continentes.
Desde a primeira guerra tarifária deflagrada em 2018 durante o primeiro mandato de Donald Trump nos EUA, o fluxo do comércio internacional indica que os países têm estreitado os laços comerciais com integrantes dentro do seu próprio bloco.
Conforme o BCE, entre 2021 e 2023, as importações entre os integrantes do bloco ocidental cresceram 2%, enquanto com membros do bloco oposto diminuíram mais de 3%. No mesmo período, as importações entre os membros do bloco oriental aumentaram acima de 2%, enquanto com integrantes do bloco oposto decresceram aproximadamente 5,5%. O Ocidente aumentou em 1% as importações de países neutros. O Oriente, em 3%.
Esse processo deve se acelerar com a segunda guerra tarifária, porque, em 2025, as tarifas chegaram a ser sete vezes maiores que as de 2018. O relatório da WEF projeta o impacto da guerra tarifária em quatro cenários diferentes: baixa, média, alta e altíssima fragmentação da economia mundial. Na simulação mais amena, a inflação subiria 0,6% no mundo e o PIB global sofreria uma redução de 0,6% em relação às projeções atuais até 2030. No cenário mais extremo, a inflação subiria 5,2% e o PIB diminuiria 5,5% acima das previsões. Esse percentual corresponde ao dobro do prejuízo que a pandemia de Covid-19 causou ao PIB global.
Países buscam alternativa ao dólar em reservas internacionais
As guerras tarifárias, o conflito na Ucrânia, a pandemia de Covid-19 e o uso geopolítico do dólar aumentaram o risco de fragmentação do sistema financeiro internacional. A principal consequência desse processo é a diminuição do uso do dólar no comércio internacional e nas reservas dos bancos centrais mundo afora. Segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI), a participação do dólar nas reservas internacionais já caiu 13% nas últimas duas décadas – de 71% em 1999 para 58% em 2024.
Em geral, os países acumulam dólares através da compra de títulos do tesouro estadunidense, porque esse ativo é considerado um dos mais seguros do mundo. Na prática, os países emprestam dinheiro para os Estados Unidos, recebem um título correspondente ao valor emprestado e, posteriormente, resgatam o valor desse título somado a um juro pago pelo governo norte-americano pelo empréstimo (entre 3% e 5% de rendimento).
O problema é que a confiança nesse ativo tem diminuído nas últimas décadas, devido ao uso político do dólar. O relatório da World Economic Forum (WEF) de janeiro de 2025 afirma que “a invasão da Ucrânia pela Rússia em 2022 e a correspondente resposta do Ocidente, que restringiu o acesso da Rússia ao sistema financeiro global, parece ter sido um ponto de inflexão”. Na ocasião, o Tesouro dos Estados Unidos congelou US$ 350 bilhões em títulos da dívida estadunidense comprados por empresas, pessoas e o estado russo. Além disso, a Rússia – a 11ª maior economia do mundo – foi excluída do sistema de pagamentos internacional Swift.
Segundo a subdiretora-geral do FMI, Gita Gopinath, esse episódio levou os países fora da América do Norte e da União Europeia a diversificar suas reservas internacionais. De um lado, os bancos centrais venderam parte dos títulos da dívida dos EUA. De outro, passaram a comprar ouro e ativos nominados em outras moedas “não convencionais”, como o dólar australiano e o dólar canadense. Esse processo vem sendo liderado pela China.
Os principais credores dos EUA – a China e o Japão – venderam US$ 746,7 bilhões em títulos do tesouro estadunidense a partir de 2014, segundo o balanço de Washington. O banco central chinês vendeu quase metade das suas reservas armazenadas em títulos estadunidenses nos últimos 11 anos, diminuindo sua posição de US$ 1,316 trilhão para US$ 756,3 bilhões.
De acordo com o FMI, os títulos da dívida estadunidense representavam 44% das reservas do banco central chinês em 2016. Hoje, representam cerca de 30%. A proporção que o ouro ocupava nas reservas chinesas subiu de 2% para 4,3% entre 2015 e 2023.
Quanto ao Japão, o país acelerou a venda dos papéis da dívida estadunidense a partir de 2021: naquele ano, o banco central japonês possuía US$ 1,328 trilhão e, em maio, de 2025, US$ 1,134 trilhão. Hoje, os países com maior quantidade de dólares nas suas reservas são Japão, Reino Unido (US$ 809,4 bilhões), China, Ilhas Cayman (US$ 441,3 bilhões) e Bélgica (US$ 415,5 bilhões).
Embora parte dos investidores questionem o status de “paraíso seguro” dos títulos do tesouro estadunidense, o economista André Cunha observa que hoje não existe outro investimento capaz de absorver a demanda de bancos centrais, empresas multinacionais e bilionários no mundo. Para entender o tamanho desse mercado, basta avaliar o tamanho da dívida acumulada dos Estados Unidos: atualmente, ela gira em torno de US$ 37 trilhões e, após a aprovação do orçamento da gestão Donald Trump, deve subir para US$ 40 trilhões.
“A China não está disposta a emitir dívida no volume que os Estados Unidos emite. Ainda mais dívida que será retida (na forma de títulos) por bancos centrais de outros países. Nesse cenário, o Partido Comunista Chinês perderia o controle sobre o próprio sistema financeiro. A China não está disposta a liberalizar o seu sistema financeiro neste momento“, analisa Cunha.
Estados Unidos buscam criar zona de influência econômica que afetaria o Brasil
A guerra tarifária do presidente Donald Trump busca reposicionar os Estados Unidos na economia do mundo multipolar do século XXI – na qual o país mais poderoso do mundo deve dividir a influência geopolítica com potências emergentes, como a China, Índia e Rússia. Nesse contexto, a Casa Branca busca a criação de uma zona de influência que incluiria as Américas e, consequentemente, afetaria o Brasil.
Segundo projeções do banco norte-americano Goldman Sachs, o PIB chinês deve ultrapassar o estadunidense por volta de 2035; e o PIB indiano deve se tornar o segundo maior do mundo por volta de 2075. Segundo estatísticas da OMC, a indústria norte-americana, que fabricava mais da metade dos manufaturados do mundo após a Segunda Guerra Mundial, produziu 15,3% em 2022. Entre 2002 e 2022, a participação da indústria chinesa saltou de 12,6% para 31,9%.
Do ponto de vista militar, os EUA se mantém como a maior potência do planeta, apesar de ter perdido espaço nesta área também. Por exemplo, após a Segunda Guerra, os Estados Unidos era o único país no mundo com armamentos nucleares. Hoje, o planeta tem mais oito potências nucleares: Rússia, Reino Unido, China, França, Paquistão, Índia, Israel e Coreia do Norte.
O professor da Faculdade de Ciências Econômicas da Ufrgs André Cunha acredita que, no cenário mundial cada vez mais multipolar, a fragmentação econômica provavelmente será mais complexa do que a divisão entre bloco ocidental, oriental e neutro. “A pressão dos EUA (por meio da guerra tarifária) visa criar realmente um redesenho na economia global, criando uma zona de influência, um espaço de projeção do seu poder, que não vai ser global como é agora, mas vai ser muito sólido em uma determinada área. A gente pode chamar essa área de ocidente, genericamente”, avalia Cunha.
O secretário do Tesouro norte-americano, Scott Bessent, não esconde que a Casa Branca trabalha para que a América Latina fique sob influência dos EUA. “Estamos tentando evitar que aconteça na América Latina o que aconteceu na África, onde a China assinou vários acordos comerciais ambiciosos como se fossem ajuda, onde assinou acordos de exploração mineral, onde acumulou grandes quantias de débitos nos balanços financeiros desses países”, disse Bessent em uma entrevista ao canal Bloomberg gravada em Buenos Aires.
Durante a guerra fria, o Brasil manteve uma política de equidistância entre as duas potências que disputavam a hegemonia no mundo, os EUA e a União Soviética. O professor de Relações Internacionais da Ufrgs André Luiz Reis da Silva acredita que o Itamaraty deveria manter uma postura neutra em meio a guerra tarifária polarizada pelos EUA e China.
“A ideia da equidistância é a barganha. A economia diversificada e o peso do Brasil no cenário internacional não permitem que a gente fique atrelado a um único polo de poder. Por exemplo, São Paulo fornece muitas peças de carros e aeronaves para a indústria norte-americana; Mato Grosso e Rio Grande do Sul têm um mercado exportador de soja e proteína animal voltado para China e o Oriente Médio. O País pode buscar ainda alternativas na União Europeia, países africanos, Rússia. Temos uma boa relação com todos esses polos“, pondera André Reis.
Brics busca diminuir dependência do dólar em comércio internacional
O uso político do sistema Swift, o principal método de pagamentos internacionais centralizado no dólar, parece ter criado uma disputa em torno do uso dessa moeda no comércio global. Por um lado, potências emergentes, como os membros do Brics, passaram a buscar métodos alternativos para realizar pagamentos com suas próprias moedas. Por outro, a administração Donald Trump aposta nos chamados stablecoins – criptomoedas pareadas com o dólar – para expandir a dominância do dólar na economia no mundo.
A proporção do comércio internacional feito em dólar varia dependendo do estudo, mas, em geral, indicam duas coisas: o dólar ainda é dominante na economia global e, ao mesmo tempo, apresenta uma tendência de queda. Conforme um estudo do Bank for International Settlements (BIS) publicado em junho do ano passado, os exportadores registraram aproximadamente 58% das suas faturas em dólares em 2023. Segundo o relatório de janeiro do World Economic Forum (WEF), esse número foi de 48% em 2024.
O estudo do BIS cita ainda que a segunda moeda mais utilizada nas exportações é o euro, que corresponde a 30% das faturas. A terceira, o renminbi chinês gira em torno de 4%. Aliás, a China tem desenvolvido diversos métodos de pagamento alternativos ao Swift, como o CIPS (Cross-Border Interbank Payment System) que permite transações internacionais na moeda chinesa e outras.
Graças a mecanismos como esse, os países do Brics já importam e exportam produtos entre si usando suas próprias moedas. O economista André Cunha explica que isso não só protege os países do uso geopolítico do sistema Swift, como também diminui os custos atrelados a moedas estrangeiras.
“Existe uma enorme vantagem em ter contratos de comércio internacional nas suas próprias moedas. Primeiro, há a eliminação do risco cambial (causado pela flutuação do dólar, por exemplo). Segundo, diminui os custos cambiais (como, por exemplo, as taxas cobradas para a compra de moedas estrangeiras).”
Além do uso de moedas alternativas ao dólar, o Brics iniciou formalmente – no encontro dos líderes em Kazan em 2022 – os estudos para a criação de uma moeda digital do bloco. Essa moeda provavelmente seria rodada em uma blockchain, a mesma tecnologia das criptomoedas, devido à resistência a sanções, baixo custo e velocidade.
“O Brics tem estudado a criação de outros métodos de pagamento, seja através da tecnologia blockchain, moedas alternativas, moedas digitais, cestos de moedas de curva média. Existem vários estudos em andamento para ver qual seria o melhor método para criar uma espécie de ‘PIX internacional‘”, pondera o professor de Relações Internacionais da Ufrgs André Luiz Reis da Silva.
Os esforços para diminuir a dependência do dólar não passaram despercebidos pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. “Acabou a ideia de que vamos assistir parados aos países do Brics tentarem se livrar do dólar. Exigimos um comprometimento desses países de que eles nunca criarão uma moeda do Brics, nem nenhuma outra moeda para substituir o poderoso dólar dos Estados Unidos”, Trump escreveu na sua conta no X após vencer as eleições em 2024.
Mas, na avaliação de André Reis, “o que parece estar em curso não é uma substituição do uso do dólar como moeda do comércio global, mas uma diversificação dos métodos de pagamento.” Ele compara: “assim como as pessoas passaram a ter várias alternativas de pagamento ao longo do tempo – dinheiro, cartão de crédito, débito, PIX – os países também terão mais de um método de pagamento à sua disposição no futuro.”
Novos métodos de pagamento entre países vão usar tecnologia das criptomoedas
A busca por novos métodos de pagamento internacional tem levado os países a lançar moedas digitais. Os Estados Unidos apostam no lançamento de “dólares digitais” por empresas privadas. A China, a União Europeia e o Brasil delegaram a digitalização das suas moedas aos seus bancos centrais. Apesar das diferenças entre os modelos, todas as iniciativas utilizam a mesma tecnologia das criptomoedas, as chamadas blockchains – que permitem transferências em segundos, a um custo mais barato que o sistema Swift e resistente à sanções estrangeiras.
A administração de Donald Trump regulamentou um tipo de criptomoedas chamadas “stablecoins”, que funcionam como uma espécie de “dólares digitais” lançados por empresas privadas. Basicamente, os clientes depositam um dólar “real” nessas empresas e, em troca, recebem um dólar “digital”. Esse dólar digital é o stablecoin, cujo valor corresponde sempre a um dólar. O processo reverso também é possível.
Quanto aos dólares “reais” recebidos pelas empresas, eles são investidos em ativos do mercado financeiro tradicional – o que torna o negócio de stablecoins extremamente lucrativo. A legislação aprovada por Trump obriga as empresas desse setor a lastrearem 100% dos seus stablecoins com ativos de baixo risco – principalmente títulos da dívida dos EUA. Segundo o secretário do Tesouro estadunidense Scott Bessent, isso deve aumentar a dominância do dólar no mercado global, porque as empresas de stablecoins devem comprar US$ 3,7 trilhões em títulos da dívida estadunidense até 2030.
Na avaliação do pesquisador grego especializado em criptomoedas Lambis Dionysopoulos, os stablecoins nominados em dólar representam uma estratégia de diversificação para expandir o alcance do dólar, e a influência dos EUA, para áreas onde essa moeda teria dificuldades de penetrar. “Isso inclui países com controles rígidos de capital e restrições a moedas estrangeiras; mercados emergentes com pouco acesso a instituições financeiras e acesso limitado a contas bancárias em dólar; entusiastas das criptomoedas que são abertamente resistentes às moedas fiduciárias; e investidores individuais atraídos pela promessa das novas tecnologias”, exemplifica Dionysopoulos.
Durante a desvalorização de 100% do peso argentino em 2023, muitos cidadãos passaram a usar stablecoins para driblar as restrições governamentais e acumular dólares por conta da alta inflação. Cidadãos africanos com baixo acesso aos bancos passaram a utilizar stablecoins para transferir dinheiro de um país ao outro, por ser mais rápido, mais barato e exigir apenas uma conexão à internet.
Quanto à criação de outras moedas digitais no mundo, a maioria dos países tem optado pelas chamadas “moedas digitais de bancos centrais” (CBDC, na sigla em inglês). Elas funcionam como stablecoins, exceto pelo fato que estão sob o controle de bancos centrais – o que implica uma regulação mais rigorosa. Uma das principais diferenças é que, enquanto os stablecoins podem ser utilizados sem a identificação dos usuários, as CBDCs exigem o registro dos usuários.
A China já está testando o “yuan digital” em Hong Kong, que pode viabilizar transações internacionais com outros países sem o uso do dólar – incluindo membros do Brics. A União Europeia está na fase final de estudos do “euro digital”, que deve ser lançado pelo Banco central Europeu em 2026. O Banco Central do Brasil trabalha na criação do real digital, batizado de Drex, desde 2023.
* Marcus Meneghetti é jornalista formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs). É pós-graduado em Artes da Escrita, pela Universidade Nova de Lisboa (Portugal). Trabalhou como jornalista político por mais de oito anos. Atualmente, dedica-se ao mercado de criptoativos.