Luzes frias. Paredes claras. Quartos repletos de sonhos colocados na estante. A linha tênue entre o silêncio e o barulho de uma vida interrompida. Dentro de um hospital, costumam existir apenas dois momentos felizes: quando é hora de dar as boas-vindas para uma nova vida e quando escuta-se o tilintar do sino da cura. E a ONG Doutorzinhos sabe disso.
Humanos primeiro, humor depois. Eis aí o lema da organização, que há quase duas décadas não se propõe a levar o riso nem a cura para dentro dos hospitais de Porto Alegre. Mas, sim, a presença. Uma presença que encontra pacientes, acompanhantes e funcionários na forma de um sorriso que contagia, um olhar que conforta e um nariz vermelho – que torna tudo mais colorido.
O amor é contagioso
Se a história da ONG Doutorzinhos fosse parar em um livro, o prefácio estaria nas mãos de um clássico longa-metragem do cinema norte-americano. Foi a partir de Patch Adams: O Amor é Contagioso, de 1998, que o empresário Maurício Bagarollo teve o seu primeiro contato com a palhaçaria de hospital.
Na época que assistiu ao filme, morava em São Paulo e decidiu ir atrás de algum projeto parecido na capital paulista. A busca, contudo, não foi bem-sucedida. E a ideia ficou na fila de espera. Enquanto isso, fez cursos de teatro e palhaçaria, se tornou professor de língua inglesa e começou sua carreira como DJ de casamentos.
Em 2003, uma mudança de cidade abriu caminhos para o primeiro capítulo desta jornada. Bagarollo foi transferido para Porto Alegre, onde começou a atuar como voluntário nos hospitais. Nesse momento, ele ainda não era palhaço, mas sim contador de histórias.
Três anos depois, entre uma leitura e outra, surgiu a oportunidade de propor o projeto para a gestão do Hospital da Criança Santo Antônio. Assim, a partir de uma pergunta despretensiosa e uma apresentação improvisada, inicia-se oficialmente a história da ONG Doutorzinhos.
Tempo de ser humano
Todas as sextas-feiras, das 18h30min até às 20h30min, a terapeuta comportamental Ana Schons sai de cena. Durante essas duas horas semanais, quem fica é a “Dra. EuVira”, uma palhaça que “se vira muito bem“. “Quando a gente bate na porta, sabemos se podemos entrar ou não só pelo olhar”, explica.
Para a voluntária, o respeito ao espaço de cada paciente é a base do trabalho realizado pela organização. “Eles já não podem dizer não quando têm que tomar uma medicação. Ou quando vão fazer um exame invasivo. Não podem dizer não para dor, nem para a doença. Mas, para a gente, eles podem dizer não”, destaca Ana.
A voluntária não tem pretensão de mudar a vida de ninguém, mas sim levar um “pouquinho” de conforto. “A gente não diz pro paciente que ele vai melhorar. Não podemos dizer isso. Mas, estamos ali disponíveis para o que ele precisar”, explica. Às vezes, é uma brincadeira. Mas, também pode ser um “vale reclamação”, uma ajuda na hora do remédio, um abraço ou uma música. E, é isso que faz cada visita única.
“É muito potente o que a gente faz. Conseguimos acessar as pessoas de um jeito muito particular, e isso reverbera na gente. Nos desafiamos a enxergar o outro e olhar realmente no olho das pessoas”, completa a voluntária.
Fábrica de produzir sentimentos
Música é vida interior, e quem tem vida interior jamais padecerá de solidão, disse um paciente em tratamento oncológico. Esse poema, do jornalista e político Artur da Távola, chegou aos ouvidos da administradora Larissa Castiglia em uma visita ao hospital. Para a “Dra. Lara Marshmellow”, que se dedica ao voluntariado há três anos, encontros como esse não têm preço.
“Participar da ONG Doutorzinhos foi uma das melhores decisões que tomei por mim mesma. Essa experiência me mudou. Me fez entender que tenho muitos privilégios. Sou privilegiada por poder entrar no hospital com hora pra sair”, explica. E, esse não é o único privilégio de Larissa. Para ela, despertar um sorriso no rosto de alguém é a melhor parte do seu trabalho.
A designer Kelly Streb, que é social media e assessora de imprensa da ONG Doutorzinhos, disse que o voluntariado entrou na sua vida como uma “grata surpresa” há oito anos. Para a “Dra. KéCafuné”, as visitas são como um compromisso de troca, amor, e escuta.
“Um dia, eu cheguei e cantei para uma pessoa que estava na UTI. Ela não tinha acompanhante, não tinha nada. E, a pessoa veio a falecer, enquanto eu cantava”, relembrou. Esse episódio, que parece ter sido feito sob medida para o poema de Artur da Távola, revelou as marcas de um trabalho sensível e transformador.
“Quando penso o que é ser Doutorzinho, não tenho dúvidas. A gente é uma fábrica de produzir sentimentos. Seja ele qual for”, completa Kelly.
Ajude a ONG Doutorzinhos
Pela primeira vez em uma década, a trajetória da Doutorzinhos precisou desacelerar. Neste ano, como consequência das enchentes que atingiram o Rio Grande do Sul em 2024, a ONG perdeu seus dois principais patrocinadores. Uma lacuna que provocou impactos significativos dentro e fora dos hospitais.
No início de 2025, o grupo realizava cerca de 35 visitas por semana. Em junho, o número já havia caído para 25. Até o ano passado, o projeto contava com pelo menos dez colaboradores diretos e indiretos, responsáveis pela direção, coordenação, captação de recursos e assessoria de imprensa. Hoje, a Doutorzinhos já não é mais o emprego desses profissionais. Para alguns, é voluntariado. E, para outros, tornou-se uma página virada de uma história inacabada.
As seleções de novos voluntários também foram interrompidas. “A gente geralmente tem duas seleções por ano. Uma no primeiro semestre e outra no segundo. Como estamos sem patrocínio, ainda não fizemos nenhuma em 2025”, explica Kelly.
O motivo disso é simples. Antes de ir a campo, os voluntários precisam participar de um treinamento rigoroso, que inclui capacitações com atores, palhaços, psicólogos e infectologistas. Afinal, na Doutorzinhos, a palhaçaria vai além do nariz vermelho, das roupas coloridas e de piadas engraçadas.
Para continuar cumprindo o seu propósito, a organização precisa de ajuda. Empresas podem apoiar ou patrocinar o projeto por meio da Lei de Incentivo à Cultura ou por doação direta, sem benefício fiscal. Já pessoas físicas podem doar por meio da plataforma APOIA.se.