Os algoritmos já deixaram de ser apenas linhas de código invisíveis para se aplicarem na gestão como uma espécie de um novo “chefe” no mundo do trabalho. Eles recrutam, avaliam, promovem, indicam penalidades e até indicam quem deve ser desligado — muitas vezes, com mais rigor e constância do que qualquer gestor humano. Essa transformação, que reorganiza relações de poder, direitos e responsabilidades, é, hoje, um dos maiores desafios para o Direito do Trabalho no Brasil e no mundo.
“Os algoritmos são usados para resolver problemas, organizar dados e tomar decisões — e, na área do Trabalho, tomar decisões em praticamente todos os níveis do trabalho humano. Desde o recrutamento [quem contratar] passando por promoção, valorização e remuneração e chegando à dispensa”, explicou o professor José Pastore, presidente do Conselho de Emprego e Relações do Trabalho da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP), no seminário O Mundo do Trabalho na Era dos Algoritmos, realizado em 14 de novembro.
“Com muita precisão, eles monitoram jornada, horários, folgas, descansos, momentos de ‘preguiça’. Atribuem notas, concluem sobre a eficiência, fiscalizam, definem rotinas, otimizam processos e vigiam constantemente. Diante disso, muitos já concluem que exercem uma subordinação no trabalho, a subordinação algorítmica”, resumiu o sociólogo.
Quando o ‘chefe’ é um algoritmo
No seminário, Pastore avaliou a obra Your Boss is an Algorithm (“O seu chefe é um algoritmo”, em português), publicada em 2020 por dois autores europeus, que ganhou forte repercussão internacional e influenciou debates na Organização Internacional do Trabalho (OIT) e na formulação da política europeia para trabalho nas plataformas. A tese central do livro: quando o trabalhador é inteiramente controlado por sistemas automatizados, não há verdadeira autonomia — há, sim, uma nova forma de subordinação, equivalente à exercida por chefes humanos.
Segundo o sociólogo, os autores defendem que o mundo deveria reconhecer relação de emprego para quem trabalha sob o comando de algoritmos. A alternativa, alertam, é um cenário povoado por “freelancers desgovernados, sem proteção e com trabalho cada vez mais precário.”
Estimativas dos autores, citadas por Pastore, indicam que cerca de 11% dos trabalhadores do mundo já têm parte ou toda a sua renda derivada de atividades executadas sob orientação de algoritmos. Ainda assim, nenhum país decidiu, de forma definitiva, que esse tipo de trabalho a distância mediado por plataformas deva ser automaticamente tratado como vínculo empregatício. “O mundo terá de se debruçar sobre essa nova realidade laboral, a qual envolve o monitoramento e a fiscalização por entes estranhos. Nós não os conhecemos direito, mas somos conduzidos para onde querem, com o objetivo de que a atividade seja executada com eficiência.”
No Brasil, pesquisas com trabalhadores de plataformas, como uma sondagem recente do Datafolha, mostram que há mais satisfação do que descontentamento entre motoristas e entregadores, e muitos dizem preferir proteção como autônomos, e não como empregados celetistas. Ao mesmo tempo, cresce a preocupação com a falta de segurança social futura, especialmente aposentadoria e cobertura em caso de doença.
“Talvez os mais velhos tenham de dizer ao jovem que não quer ser celetista: ‘Tudo bem, mas você precisa fazer o seu pé de meia. Você vai precisar de proteção lá na frente’”, ponderou Pastore. Para ele, o Brasil precisa inovar na área de Seguros Sociais, criando modelos que contemplem quem queira atuar como autônomo, mas não pode ficar totalmente descoberto.
Subordinação jurídica ‘versus’ subordinação por algoritmo
Ainda que os autores do livro tenham embasado a legislação europeia, Pastore jogou luz sobre a complexidade do tema até mesmo naquele continente que tende a criar regras rígidas à atuação de empresas de tecnologia. Lá, a regulação não deixou claro, como os escritores pretendiam, que o relacionamento de uma pessoa que trabalha sob algoritmo é de vínculo empregatício.
No Brasil, quando se trata dessa distinção, o Judiciário trabalhista também não é unânime. Para a desembargadora federal do Trabalho Sônia Aparecida Costa Mascaro Nascimento, do TRT da 2ª Região (SP), a questão central, aqui, está em como interpretar a subordinação para caracterizar o vínculo de emprego pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
“Estamos discutindo o coração do Direito do Trabalho, que é o artigo 3º da CLT”, afirmou, durante a sua exposição sobre a subordinação por algoritmo e o novo mercado laboral. “Ali estão os requisitos da relação de emprego — pessoalidade, habitualidade, remuneração e, para esse tema, sobretudo a subordinação. E o que está na lei é a subordinação jurídica, não a subordinação por algoritmo. Esta é uma criação doutrinária. Não está prevista em norma.”
De acordo com Sônia, quem julga atualmente precisa se ater ao que a legislação efetivamente prevê: trabalho subordinado e trabalho autônomo. As novas formas mediadas por plataformas, embora já discutidas em doutrina e jurisprudência, ainda não foram plenamente regulamentadas, e a chamada subordinação algorítmica carece de respaldo legal expresso.
“Precisamos de lei para esclarecer esses pontos”, defendeu. “A subordinação por algoritmo está sendo debatida, mas não há norma sobre isso. Muitas decisões dizem simplesmente que se não está previsto na legislação brasileira, não existe. Então, temos de trabalhar com a subordinação jurídica. A meu ver, a subordinação por algoritmo não existe no Direito do Trabalho brasileiro.”
Nesse sentido, na visão da desembargadora, há uma diferença fundamental entre olhar para o que faz a empresa/plataforma e olhar para a atividade concreta do trabalhador, e essas duas visões têm dividido as interpretações da Justiça do Trabalho no País. Resume-se da seguinte forma:
– subordinação jurídica (o que está na lei hoje): é quando o julgador olha para a atividade concreta do trabalhador. A análise se volta para o modo como ele presta serviços — se tem horário fixo e obrigatório, se sofre punição caso não compareça, se há controle direto sobre a jornada, se pode ou não recusar trabalho, se há exigência de exclusividade, entre outros;
– subordinação por algoritmo (construção doutrinária, sem previsão legal expressa): o foco se desloca para a atividade da empresa e da plataforma, e não para o dia a dia do trabalhador. Olha-se o aplicativo em si — a existência de regras padronizadas, comandos automatizados e programação que estabelece critérios, notas, bloqueios e desligamentos. A partir disso, conclui-se que o controle exercido pelo sistema já seria suficiente para caracterizar uma forma de subordinação.
Para a desembargadora, porém, esse raciocínio inverte a lógica da CLT, que manda olhar prioritariamente para a atividade do trabalhador, e não apenas para a forma de organização da empresa. “O fato de existir um contrato de adesão ao aplicativo, com regras padronizadas, não é, por si só, sinal de subordinação. Toda empresa precisa se organizar, ter gestão. Isso está no artigo 2º da CLT, é Direito Corporativo. Se eu olho só para a companhia, todos serão subordinados, mas, na realidade, ela tem empregado, autônomo, terceirizado etc.”
Os indícios de trabalho autônomo
Na prática, o debate tem se concentrado, sobretudo, nos motoristas de aplicativos, como os que atuam para a Uber e o IFood. E os tribunais superiores estão longe de um consenso. Segundo Sônia, tanto no Tribunal Superior do Trabalho (TST) quanto nos Tribunais Regionais do Trabalho (TRTs), as turmas estão divididas. Algumas reconhecem o vínculo de emprego; outras, não.
A desembargadora se alinha com o grupo que vê, hoje, mais elementos de trabalho autônomo do que de relação empregatícia, a partir da análise de como o motorista atua. Dentre os principais indícios de autonomia apontados por ela para esses dois casos, destacam-se:
- ferramenta de trabalho própria: veículo, despesas de manutenção, combustível, seguro e outros custos ficam a cargo do motorista;
- assunção de risco econômico: o trabalhador arca com parte relevante dos riscos do negócio, já que investe recursos próprios e pode ter variação considerável na renda;
- flexibilidade de jornada: o motorista decide quando se conectar ou permanecer offline, escolhendo os dias e horários em que quer trabalhar;
- atuação em múltiplas plataformas: não há exigência de exclusividade, ele pode prestar serviços para aplicativos concorrentes simultaneamente;
- possibilidade de recusar corridas: o motorista pode não aceitar clientes, ainda que haja eventuais consequências em caso de recusa reiterada.
“Se eu posso trabalhar para o meu concorrente, onde está o vínculo de emprego? Se eu posso recusar o cliente, isso é típico do trabalho autônomo”, argumentou.
Do outro lado, parte da doutrina e da jurisprudência sustenta que a existência de um aplicativo que estabeleça parâmetros, notas, desligamentos automáticos e caminhos obrigatórios seria suficiente para configurar a subordinação algorítmica — uma espécie de atualização da antiga “subordinação estrutural”, tese segundo a qual o simples fato de o trabalhador se inserir na dinâmica produtiva de determinada empresa poderia caracterizar o vínculo.
“Essa corrente se apega à ideia de que, se há um programa com regras, pronto, há a subordinação por algoritmo. Para mim, isso é algo do século passado, uma subordinação estrutural que nem deveria mais existir, porque a terceirização já a esvaziou”, criticou Sônia.
Perícia em algoritmos
O impasse tem gerado debates até sobre as perícias em algoritmos. Alguns juízes têm determinado a realização de avaliações técnicas nos sistemas das plataformas para verificar se há comandos capazes de configurar subordinação.
Sônia vê o movimento com reservas. “Se eu entendo que a subordinação jurídica exige olhar para a atividade do empregado, não vejo lógica em periciar o aplicativo para descobrir se há um vínculo. O que tenho de olhar é o modo como o trabalhador presta serviços, não o código-fonte da empresa.”
No TRT da 2ª Região, discute-se um modelo intermediário: permitir a perícia em algoritmos apenas em casos excepcionais, quando não houver outra prova suficiente (testemunhal ou documental), e sempre com limites rígidos para não violar o segredo de negócio ou a propriedade intelectual. Ainda assim, a expositora admite que há dúvidas sobre até que ponto é possível examinar um aplicativo sem invadir o núcleo sensível da empresa.
Projeto de lei e decisão do STF no horizonte
Sônia vê com bons olhos a iniciativa do Projeto de Lei (PL) de autoria do deputado Luiz Gastão (PSD/CE), para a regulamentação do trabalho nas plataformas digitais, proposta em tramitação que determina que motoristas e entregadores de aplicativos seriam trabalhadores autônomos, e não empregados, ainda que mereçam uma proteção mínima regulada em lei.
Paralelamente, a desembargadora lembrou, o Supremo Tribunal Federal (STF) marcou para dezembro o julgamento de um caso que pode se tornar referência nacional sobre o tema. Caberá ao plenário da Corte dizer se há, ou não, vínculo de emprego nos modelos de trabalho de motoristas por aplicativo. “Pelo menos esse ponto deve ser resolvido. Depois, vamos ver se a Justiça do Trabalho vai obedecer”, advertiu. Mesmo que a Corte não trate de todos os detalhes, a expectativa é que fixe balizas gerais para o enquadramento jurídico dessas relações.
Proteção social para autônomos
Em comum, tanto Pastore quanto Sônia convergem em um ponto: a necessidade de novos modelos de proteção social para um mercado de trabalho cada vez mais fragmentado, intermediado por plataformas e marcado por relações flexíveis.
Pastore aponta que as modalidades hoje disponíveis na Previdência Social para autônomos — contribuinte individual e facultativo — são caras e de difícil manutenção, o que alimenta a inadimplência e deixa muitos trabalhadores descobertos.
Sônia, por sua vez, insiste que reconhecer o caráter autônomo dessas relações não pode significar abandono. É preciso que uma futura lei estabeleça uma proteção mínima obrigatória, sem confundir isso com vínculo de emprego tradicional. “Planos de saúde, seguros e contribuições previdenciárias podem ser oferecidos pelas empresas. Mas isso, por si só, não deve ser interpretado como subordinação”, concluiu.