A Mesorregião Noroeste do Estado é, atualmente, o principal polo leiteiro do País. Segundo a Emater/RS-Ascar, cerca de 86% do leite produzido no Rio Grande do Sul se concentra em 273 municípios, numa área de apenas 26% do Estado. Apesar da produtividade constante, o setor leiteiro tem enfrentado uma tendência de concentração: em dez anos, o número de produtores diminuiu em quase dois terços.
Há anos, o estado gaúcho sustenta uma produção leiteira estável. Segundo os dados preliminares da 6ª edição do Relatório Socioeconômico da Cadeia Produtiva do Leite no Rio Grande do Sul, organizado e apresentado pela Emater/RS-Ascar na 48ª Expointer, houve uma pequena queda no total de leite produzido no atual período. Em 2023, o Estado produziu um total de 4,12 bilhões de litros. Já em 2025, esse número é de 4,09. Apesar disso, observou-se um leve aumento na produção do leite destinado à industrialização: de 3,83 bilhões de litros em 2023, o número passou a 3,84 bilhões.
Como comparação, o Estado de Minas Gerais, líder nacional no setor, produziu 9,7 bilhões de litros de leite em 2024, segundo os dados da última Pesquisa da Pecuária Municipal (PPM) do IBGE. Ou seja, mais de 27% de todo o leite brasileiro. O Rio Grande do Sul, terceiro maior produtor, foi responsável por aproximadamente 11% da produção do País.
Segundo o documento da Emater/RS-Ascar, o Valor Bruto da Produção (VBP) estadual é de R$ 9,5 bilhões por ano. Trata-se do quinto produto com maior VBP no Estado, atrás somente da soja, arroz, frango e suíno.
O leite tem importância econômica, social e cultural de norte a sul do Estado. Em 2023, dos 497 municípios gaúchos, 493 contavam com a produção de leite. Nos dados prévios do 6º Relatório Socioeconômico da Cadeia Produtiva do Leite no RS, a Emater/RS-Ascar estima que 451 municípios destinem leite para a industrialização. Apesar disso, a produção estadual é impulsionada, principalmente, pela metade norte e, em especial, pela mesorregião noroeste.
É histórica a importância dessa parcela do Estado para a cadeia produtiva do leite no território nacional. Conforme o Anuário Leite 2025, produzido pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), a relevância tornou-se ainda mais significativa num intervalo de duas décadas.
Em 2003, o noroeste era o segundo maior polo produtor de leite no País, com cerca de 1,3 bilhões de litros anuais. Vinte anos depois esse número mais que dobrou: segundo os dados do IBGE, a mesorregião produziu 2,72 bilhões de litros de leite em 2023, destacando-se como o maior centro produtor em todo o País. Trata-se de praticamente 70% do leite produzido no Estado, atualmente o terceiro maior produtor, atrás de Minas Gerais e Paraná.
Ou seja, sozinha, a Mesorregião Noroeste produziu 7,71% de todo o leite brasileiro em 2023, de acordo com a Embrapa. Segundo Jaime Ries, assistente técnico estadual da Bovinocultura Leiteira e coordenador das pesquisas sobre a cadeia produtiva do leite pela Emater/RS-Ascar, a importância da metade norte para a produção leiteira é inegável.
“Eu diria que, incluindo também o Vale do Taquari, nós temos quase 86% das propriedades que produzem leite e também do leite industrializado em todo o Estado. Se for ver, em 26% da área estadual, concentramos 86% da produção, para se ter uma ideia da concentração. Ela é muito grande nessas regiões. Já foi mais importante na região metropolitana e no litoral, mas hoje praticamente está sumindo daqui. Na metade sul, tem alguns polos importantes em São Lourenço, Bagé e Livramento, mas, no geral, a produção de leite é toda concentrada na metade norte“, reforça.
Nessa ampla região produtora, a cidade de Santo Cristo se destaca há alguns anos como a maior produtora estadual. Os últimos dados da Pesquisa da Pecuária Municipal (PPM) do IBGE, divulgados em setembro, demonstram que o município da Fronteira Noroeste contabilizou 75,198 milhões litros de leite em 2024. Dos dez municípios que mais produziram leite no último ano, apenas São Lourenço do Sul não faz parte da Mesorregião Noroeste.
Apesar da estabilidade no volume produtivo anual, alguns desafios do setor têm afastado os pequenos produtores da atividade leiteira, principalmente nos últimos dez anos.
Menos estabelecimentos, mais concentração produtiva
Os dados da 6ª edição do Relatório Socioeconômico da Cadeia Produtiva do Leite no RS revelam uma sequencial redução no número de produtores em todo o Estado nos últimos anos. Em 2015, o Rio Grande do Sul contava com 84.199 estabelecimentos produtores de leite. Em 2025, esse número caiu para praticamente um terço: apenas 28.946.
Para Jaime Ries, coordenador do relatório da Emater/RS-Ascar, um dos aspectos que devem ser levados em conta é a estagnação produtiva em todo o País nos últimos anos. “O Rio Grande do Sul mantém sua fatia em torno de 11% a 12% da produção brasileira. Então esse é o tamanho do nosso mercado de leite no Estado. Vamos arredondar para 4 bilhões de litros. Ou seja, na medida que uns crescem e outros saem, perdendo competitividade, mas o volume total fica estável. Com os volumes médios diários hoje, se mantivéssemos aqueles 84 mil produtores de 2015, teríamos de produzir como a Argentina. Estaríamos produzindo mais ou menos como Minas Gerais e Santa Catarina juntos”, pondera.
Segundo Ries, o que ocorre atualmente é um processo de especialização. Propriedades maiores têm aumentado o número de confinamentos, para viabilizar a produção em escala.
No mesmo compasso, o número de vacas leiteiras também diminuiu nos últimos dez anos. Em 2015, eram mais de 1,17 milhões de animais. Hoje, são pouco mais de 742 mil. Entretanto, o número de animais por estabelecimento está aumentando — o esperado para um cenário de concentração. De menos de 14 vacas leiteiras em 2015, hoje a média é de mais de 25 por propriedade no Estado. As vacas também produzem mais: hoje, a produtividade média é de 17 litros diários por animal. Em 2015, eram 11,8 litros por vaca ao dia. Com as atuais tecnologias como a robotização, há estabelecimentos que chegam a uma produtividade na casa dos 45 litros diários por vaca.
Para Darlan Palharini, Secretário Executivo do Sindilat e Coordenador do Milk Summit Brazil 2025, a redução dos estabelecimentos é um movimento mundial na cadeia produtiva do leite. “O Rio Grande do Sul não passaria sem também ter esse ajuste de número de produtores, já que, se a gente pegar os Países vizinhos, a Argentina e o Uruguai também passaram por esse processo”, relembra.
Palharini acredita que pontos cruciais limitam a continuidade das propriedades leiteiras. Segundo ele, hoje, é um desafio manter um estabelecimento com produção abaixo de 200 litros diários. Outro aspecto muito citado é a falta de mão de obra. Jaime Ries menciona, ainda, o envelhecimento da população rural. “A população rural vem diminuindo, a idade média aumentando. E o leite é uma atividade que, diferente da soja e milho, exige mão de obra todos os dias, o ano inteiro“, reitera. Para ele, as principais dificuldades dos produtores estão relacionadas: pouca mão de obra, falta de sucessão familiar, renda da atividade e custo elevado.
Setor necessita de mais tecnologia e genética
Além da mão de obra, a redução também se explica pela necessidade de investimentos na atividade, como tecnologia, equipamentos e genética, bem como o envelhecimento das pessoas no meio rural. “Em outras palavras se não há sucessão, não terá investimentos. Isso se evidencia nas propriedades que estão investindo, pessoas mais jovens se dedicando a atividade. O número de propriedades produtoras diminui, mas a produção e produtividade aumentam significativamente”, comenta Mário Farina, presidente da Agricoop – Cooperativa Agrofamiliar.
Com sede em Erechim, a cooperativa já teve os produtores de leite como parcela majoritária dos associados. Em dez anos, esse número saiu de mais de mil produtores para 276.
“Mas percebe-se muitos jovens voltando a atuar, o que é muito positivo. Atualmente, na grande maioria das propriedades o problema maior é de gestão, a análise dos custos. Temos grandes avanços, mas existe um longo caminho a percorrer”, pontua Farina.
Darlan Palharini cita, ainda, dificuldades como a falta de acesso à internet nas propriedades, bem como a baixa assistência técnica em alguns estabelecimentos. “As empresas que têm assistência técnica têm conseguido manter seus produtores, aumentar sua produção. Agora, aquelas empresas sem muita ênfase nessa questão têm tido essa dificuldade maior. Tanto que, no próprio levantamento da Emater, há uma quantidade de produtores que abandonam a atividade justamente pela falta de assistência técnica”, complementa.
Jaime Ries acrescenta também que os impactos climáticos afetam diretamente os custos da produção. “Reduz a produção de pastagem e mais até na silagem, que é o principal alimento conservado no ano inteiro. Com menos estoque de alimento, o produtor precisa comprar mais suplementos de fora, às vezes ração com maior teor de proteína, que são questões que elevam o custo. Pastagem e silagem são os alimentos mais baratos que existem. Toda vez que o produtor tem dificuldade de produzir os volumosos na propriedade e tem déficit nisso, o custo automaticamente aumenta. E o pequeno produtor sente mais, porque depende mais da pastagem do que o grande“, analisa.
O assistente técnico da Emater/RS-Ascar acredita que a redução na quantidade de estabelecimentos no setor leiteiro é uma tendência que deve prosseguir.
“Muitos jovens dizem: ‘Pai, ou a gente bota um confinamento, a gente aumenta a produção, porque eu não vou ficar aqui por causa de 100 ou 200 litros de leite por dia’. Então essa tendência está havendo, está aumentando o número de confinamentos, que são estruturas maiores, que precisam ser mais eficientes para se pagarem. Não é que a gente ache isso ideal. Porque, do ponto de vista dos municípios, o pequeno produtor de leite distribui melhor a riqueza localmente, dentro do município, enquanto os grandes produtores têm outros gastos, não aqueles básicos. Porque o leite sempre foi o cheque do mês, ia para o mercado, para a farmácia, cobria despesas básicas”, pontua.
Pouca mão de obra, incerteza de preços e efeitos do clima afastam produtores no norte do Estado
Na zona rural de Campinas do Sul, no norte do Estado, a família de Elezio Slomp produzia leite desde 1968. No início, a atividade era comandada pela mãe; o leite, destinado apenas ao consumo da família. A partir de 1980, começaram a vender não apenas o leite, mas a produção artesanal de queijo. Em 1995, o estabelecimento se profissionalizou, com funcionários e implementação de genética uruguaia. O crescimento foi constante, até Elezio determinar o final da atividade em 2021.
Eram 250 cabeças de gado, num total de 182 hectares da propriedade. Do rebanho, 110 vacas estavam em produção em 2021 — os outros animais eram terneiros, vacas secas e uma minoria de gado de corte. A produção era considerável: de 3.800 a 4.100 litros de leite por dia. Para dar conta, Elezio empregava dois casais de funcionários fixos, dois diaristas, além de terceirizar veterinário, casqueador e nutricionista.
Conforme o último Relatório da Emater/RS-Ascar, a grande maioria dos estabelecimentos do Estado produz, diariamente, até 1.000 litros de leite. Apenas 6,9% produz mais de 1.000 litros diários. A parcela que produz mais de 2.500 litros é ainda menor: 1,49%.
Embora parte de uma minoria de produtores de leite, com um volume diário na faixa de 4.000 litros, uma série de motivos deram fim à atividade no estabelecimento dos Slomp. A primeira — e principal, segundo Elezio — foi ausência de mão de obra. Outro fator foi a incerteza de preços de comercialização do leite. Por último, os anos de estiagem dificultaram a produção de alimento, uma vez que as vacas estavam em pastagem, aumentando o custo dos insumos, da silagem, sementes e combustível.
“Estávamos com um grande número de animais a pasto e chegamos a um ponto em que a gente ou investia nos animais, fazia uma nova estrutura, num valor estimado em torno de uns R$ 3 milhões só para a gente fechar esses animais, ou a gente encerrava“, Slomp justifica.
Nesse cálculo de incertezas de preços, mão de obra e intempéries, também pesou a rotina. “Na pecuária de leite, é 4h ou 5h da manhã todos os dias. Não tem sábado não tem domingo. Pode estar se formando, tu vai ter que tirar leite de manhã, pode estar casando um filho, tu vai ter que tirar leite. Pode até ter funcionário, mas o cara está sempre junto, todos os dias. Então, juntando tudo, esses são os principais motivos”.
Mais de cinquenta anos se passaram desde que a família Slomp começou a produzir leite na propriedade. Com a decisão de encerrar a atividade, Elezio investiu na pecuária de corte. Chegou a ter 300 cabeças. O ramo, no entanto, não se mostrou rentável. Aos poucos a produção foi diminuindo. Resta apenas uma cabeça de gado, para consumo próprio.
“Hoje em dia, a gente compra um boi magro e fica até três ou quatro meses tratando. Fazendo a conta no final, quando abate, está sobrando 200 reais a cabeça. Então hoje nós estamos pagando para trabalhar“.
Atualmente, Slomp se dedica à criação de ovinos e às lavouras de grãos, nas antigas áreas que, por décadas, foram destinadas à silagem e pastagem ao gado leiteiro.
De acordo com Mário Farina, presidente da Agricoop, o leite ainda se demonstra rentável e seguro, apesar da desistência de muitos produtores. “Nas propriedades da agricultura familiar, com baixa mecanização e escala, muitos produtores acreditam que plantando soja vão progredir, mas a realidade tem demostrado que o leite é que paga a conta”, assinala.
Para Farina, os desafios são oportunidades e o leite continua a ser uma atividade importante na agricultura familiar. “O papel da cooperativa é incentivar, apoiar através da assistência técnica, financiamentos, fornecimento de insumos, buscar a melhor negociação da matéria prima. Acordar cedo, trabalhar nos feriados, finais de semana e dias chuvosos e frios, faz parte do processo”, enfatiza.
Tecnologia e sucessão familiar impulsionam a produção leiteira em Aratiba
Eliete Smaniotto cresceu no ambiente rural em Aratiba, no norte do Estado. Eram inúmeros animais a sua volta. Seus pais criavam aves, suínos e vacas de leite. Eliete acompanhava a rotina, ainda criança, se afeiçoando pelos bichos. Houve um tempo, no entanto, em que a família Smaniotto precisou escolher uma única atividade para dar sequência.
“Para a gente conseguir trabalhar com mais qualidade, porque tudo demanda muito tempo e mão de obra. Então, tivemos que optar por uma. E meus pais optaram pelas vacas de leite“, conta.
Eliete nunca saiu de casa para trabalhar, sempre viveu a lida na propriedade. Assim, nasceu o amor pela produção leiteira. “Elas não são só animais e produção, a gente acabou criando um carinho. Meus pais também são apaixonados pelo que fazem, também têm um carinho muito grande. Então eu acho que foi um amor que foi passado de geração e que foi se criando ao longo do tempo“.
Hoje, o rebanho conta com 140 animais, dos quais 61 são vacas em ordenha. Diariamente, elas produzem em média 2.700 litros de leite — aproximadamente 45 litros por vaca ao dia. Para isso, a ordenha é completamente robotizada, desde fevereiro de 2025.
A tecnologia ainda é rara, mas cada vez mais presente na ordenha dos estabelecimentos leiteiros. Segundo a Emater/RS-Ascar, em 2019, a robotização fazia parte de apenas 0,06% dos estabelecimentos. Em 2021, já eram 0,18%. Em 2023, 0,35%.
Na propriedade da família Smaniotto, o robô foi uma solução para suprir a falta de mão de obra. “Nós somos uma propriedade familiar. Eu, meu irmão mais novo e meus pais que trabalhamos. Então a gente sentou para decidir entre robotizar ou contratar mão de obra, contratar funcionários”.
Ponderando os pontos positivos e negativos, a família optou pela robotização da ordenha. Eliete já conhecia a tecnologia. Comentava com os pais, mas era um sonho ainda distante, por conta do alto valor. “Na hora que fechamos o pedido foi um sonho realizado”, relata.
Para que todo o sistema fosse implantado, foi necessário um investimento de aproximadamente R$ 1,5 milhão. A partir de então, toda a rotina da ordenha foi alterada. Antes, era necessário passar cinco ou seis horas, todos os dias, só para a ordenha. Hoje, o robô faz o serviço 24h por dia.
“Ele para um pouco para fazer as lavagens, porque ele faz três lavagens durante o dia. A vaca escolhe o momento que ela quer ordenhar, e a gente tem todo um controle reprodutivo no sistema do robô, controle de qualidade do leite, de produtividade, controle de sanidade do animal”, descreve.
A robotização tem suprido a necessidade de mão de obra na propriedade. O equipamento comporta cerca de 65 vacas. “Então a gente está no limite, né? E caso a gente queira aumentar o plantel, aí a gente coloca um segundo robô”.
Além disso, a família também tem planejado melhorias estruturais, como forma de lidar com as altas temperaturas e garantir uma melhor produtividade — sem esquecer do conforto para os animais.
“A gente pensa ainda que alguns anos fechar o barracão, climatizar, para que se mantenha uma temperatura boa para as vacas, porque a gente acaba sofrendo muito no verão, por ser muito quente, e as vacas precisam de uma temperatura mais baixa para produzir mais, para conforto térmico, bem-estar, e para manter a cama delas“, esclarece.
Nesse sentido, a família tem debatido a possibilidade de mudar o atual sistema de confinamento, compost barn para free-stall: “justamente por manter a cama melhor porque no inverno é muito úmido e acaba ficando muito úmida a cama e no verão é muito quente”, explica.
Eliete está no oitavo semestre do curso de veterinária. Hoje, dá sequência à sucessão familiar, mas quase tomou um rumo longe da atividade. “Até comecei a fazer cursinho para vestibular pensando em uma área totalmente diferente. Nas primeiras, eu cheguei para os meus pais desesperada, comecei a chorar porque eu não queria sair de casa, eu não queria fazer outra coisa, eu não me via mais sem estar ali. Meus pais sempre me apoiaram muito e nessa hora ainda mais”, lembra.
A jovem produtora percebe a instabilidade do setor como um empecilho recorrente entre os produtores. Para isso, aposta na organização financeira.
“Tem meses que o preço está muito bom, tem meses que o preço está muito baixo. Então para não acabar desistindo, não acabar quebrando, a gente tem que ter uma organização muito grande“.
Mesmo assim, ela vê muito mais benefícios na escolha pela sucessão familiar, para além da paixão pelos animais e pelo trabalho. “Eu, particularmente, acho que é uma coisa muito boa. Eu estou dando continuidade num negócio que é da minha família, então eu posso fazer os meus horários, eu posso fazer as coisas do jeito que eu quero, não tem ninguém me mandando. A gente tem uma liberdade muito maior, eu tenho uma liberdade muito grande em ajustar a minha rotina, em trabalhar do jeito que eu quero, em crescer quando eu quiser crescer e inovar quando eu quiser inovar“, finaliza.
Produção leiteira é fonte de sustento a pequenos produtores no Alto Uruguai
No pequeno município de Cruzaltense, Suelen e André Trentin produzem pouco mais de 200 mil litros de leite por ano. São jovens produtores, associados à Cooperativa Alfa, que garante a assistência técnica necessária para a prevenção sanitária e possíveis emergências com o rebanho.
A alguns quilômetros de distância, em Campinas do Sul, Aniele e Renaldo Bernardi acordam antes das 5h da manhã para ordenhar as vacas. São produzidos cerca de 225 litros de leite por dia, vendidos para a cooperativa Santa Clara.
“Entregamos 450 litros de leite a cada dois dias, leiteiro vem buscar o leite um dia sim outro não”, conta Aniele. Para ela, a segurança dos filhos, a parceria do casal na lida diária e a oportunidade de produzir o próprio alimento são os principais benefícios da vida rural — além, é claro, da possibilidade de estabelecerem a própria carga horária.
Segundo os dados da Emater/RS-Ascar, o Corede Norte teve uma das maiores produções totais de leite no ano de 2023: foram 320,4 milhões de litros. Apenas a Fronteira Noroeste, o Vale do Taquari e a Serra produziram mais.
Apesar disso, nenhum dos municípios do Norte figuram entre os principais produtores do Estado. No entanto, a pesquisa mostra que o Corede somou o maior número de estabelecimentos com um volume diário de mais de 2.500 litros de leite. Foram 75.
O volume, no entanto, nem sempre reflete na remuneração dos produtores. Aniele Bernardi acredita que o baixo preço do leite é uma das principais dificuldades do ramo. De acordo com o Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea), o produtor recebe, em média, R$ 2,47 por litro de leite, considerando o período entre junho de 2024 e julho de 2025. A família Bernardi, porém, recebe apenas R$ 2,14 por litro.
Jaime Ries, assistente técnico estadual da Bovinocultura Leiteira e coordenador das pesquisas sobre a cadeia produtiva do leite pela Emater/RS-Ascar, afirma que a indústria ainda paga mais pelo volume do que pela qualidade.
“Apesar de esforços para premiar a qualidade, na prática, há uma disputa pelos maiores produtores. Isso faz com que eles recebam, muitas vezes, pelo menos 30% a mais por litro de leite do que o pequeno produtor, porque a indústria tem ganhos logísticos, redução de custos de transporte e de controle de matéria-prima, quando concentra a coleta do leite”, explica.
Para Mário Farina, presidente da Agricoop de Erechim, há uma constante disputa de mercado, em todo o setor agropecuário, permitindo que grandes empresas pratiquem preços diferentes em cada região a depender da necessidade. O mesmo, contudo, não é possível para pequenas cooperativas e empresas regionais.
“No leite também é assim. Temos empresas que atuam aqui no Alto Uruguai, empresas de fora. Então quando há uma demanda e necessidade, eles acabam aplicando preços diferentes, o que gera um desconforto bastante grande“, avalia.
Apesar disso, Farina se mantém otimista. Há alguns anos, a Agricoop, em conjunto com outras cinco cooperativas, sustenta uma parceria com a Santa Clara. “A parceria com a Santa Clara está sólida. Hoje, está mais no campo do incentivo à produção, qualidade e logística. Existe um debate permanente para avançarmos em parcerias estratégicas, industriais”, conta.
Essa discussão é importante, segundo Farina, uma vez que cooperativas como a Agricoop não detêm uma planta industrial. Para isso, seria necessário um investimento na casa dos R$ 500 milhões. Segundo ele, a intercooperação é estratégica, uma vez que a Santa Clara já possui a indústria, ao mesmo tempo em que precisa investir para aumentar a captação.
“Nós podemos usar essa sinergia, essa força toda num projeto comum, que com certeza vai ser muito mais eficiente. Em última análise, quem vai ganhar é o produtor de leite“, conclui. Dos R$ 118 milhões faturados pela Agricoop no último ano, o leite foi responsável por quase 60%: foram R$ 69 milhões.
Divisão do trabalho e tomada de decisão na produção leiteira
A atividade leiteira é um trabalho historicamente desenvolvido por mulheres, segundo o artigo “Participação das mulheres e a tomada de decisões na pecuária leiteira no município de Ibirubá/RS”, assinado pelas pesquisadoras Claudia Maria Prudêncio De Mera, Ana Luiza Rossato Facco e Daiana Camera. O estudo afirma que, no passado, a atividade era considerada “feminina e o aprendizado das técnicas de produção eram passadas das mães para as filhas”.
Apesar disso, o trabalho das mulheres acaba sendo subordinado nas propriedades rurais. A tomada de decisões, de acordo com o estudo, ainda é majoritariamente uma atribuição masculina na agricultura e na pecuária leiteira. “Este cenário”, segundo as autoras “pode prejudicar a sucessão geracional da atividade, especialmente para as filhas”.
Para a jovem produtora Eliete Smaniotto, de Aratiba, seguir na propriedade familiar foi um desafio, tanto pela idade quanto pelo gênero. “Eu acho que por ser uma jovem produtora de leite a gente ainda tem muito esse preconceito por ser mulher. Eu estou começando, então ainda meu pai que toma a maior parte das decisões, embora a gente converse junto. Mas por ser mulher e estar no início essa sucessão, é um pouco complicado”, revela.
Se o cenário pode afastar as mulheres da atividade leiteira, uma das principais culturas do ciclo do leite está se tornando cada vez mais rara: a produção de queijo caseiro.
Até algumas décadas atrás era comum que a prática fosse difundida por diversas propriedades rurais, em todo o interior do Estado. O queijo era facilmente encontrado em inúmeras peças dispostas sobre toalhas nos porões ou em pequenos comércios.
Essa realidade já não é a mesma, entretanto. É cada vez mais difícil encontrar produtoras de queijo artesanal. Um dos motivos é, justamente, o atual desinteresse da parcela da população que historicamente consolidou a prática: as mulheres.
É evidente que outros importantes fatores são cruciais para a restrição na atividade, como o endurecimento das leis sanitárias. Segundo a produtora Aniele Bernardi, outro fator limitante tem sido o clima. “Algumas pessoas conhecidas param de fazer porque o calor ultimamente está muito forte e isso não é muito bom para os queijos. Eles acabam estufando e ficando muito ácidos”, justifica.
Por fim, a jornada de trabalho muitas vezes é um empecilho a mais. Logo após a longa rotina de ordenha, que começa às 5h da manhã, Aniele lava todos os utensílios utilizados e retorna para casa, para dar continuidade às tarefas domésticas, sempre de olho nos filhos pequenos.
Nessas jornadas duplas ou triplas, pouco tempo sobra. E o tradicional queijo caseiro, demorado e trabalhoso, vai perdendo seu espaço sobre os balcões do interior gaúcho.
Rio Grande do Sul produz o melhor leite do Brasil
A força do leite na região Norte contrasta com um trauma recente. Há uma década, a Operação Leite Compensado atingiu diretamente produtores e cooperativas da região do Alto Uruguai, culminando em crises no setor.
Conforme Darlan Palharini, Secretário Executivo do Sindilat e Coordenador do Milk Summit Brazil 2025, a Operação Leite Compensado teve impactos negativos em todo o Estado, mas também serviu para que o setor reconhecesse “alguns pontos falhos e que precisava trabalhar no sentido de melhoria da qualidade e da transparência do processo”.
Palharini afirma que o Rio Grande do Sul tem, atualmente, a “melhor qualidade de leite produzido no Brasil. Tanto que hoje a gente continua vendendo mais de 60% da nossa produção para outros Estados, justamente por esse reconhecimento da qualidade do nosso produto”.
Hoje, para o Secretário Executivo do Sindilat, o grande desafio do setor diz respeito à competitividade com o mercado externo. “O produto lácteo na sua grande maioria é commodity, principalmente o leite em pó e o queijo muçarela. O nosso preço ele ainda é um pouco acima do que o mercado mundial está pagando, mas ele está evoluindo bastante nesse sentido de fazer frente produto importado”.
Durante os últimos dias 14 e 15 de outubro, Palharini coordenou o primeiro Milk Summit Brazil, em Ijuí. Foram 21 palestras para um público de cerca de 750 pessoas no noroeste do Estado. O evento foi uma realização do governo do Estado, através da Seapi e do Fundo de Desenvolvimento da Cadeia Produtiva do Leite do RS (Fundoleite), em conjunto com o Sindilat/RS, Prefeitura de Ijuí, Emater/RS-Ascar, Suport D’Leite e Impulsa Ijuí. A segunda edição já foi confirmada para 2026, também no município do noroeste.
“Temos visto uma profissionalização muito grande da atividade no noroeste, com a entrada de tecnologia, que acaba amenizando bastante a questão da mão de obra. Então eu diria que a região noroeste do Estado está no caminho certo, com aumento de produção e de competitividade“, conclui.