No bairro Partenon, zona Leste de Porto Alegre — território com a maior população negra da capital — uma casa antiga se tornou ponto de virada. Ali funciona o Instituto Caminho, organização que oferece acolhimento, orientação jurídica e formação profissional para a população negra. Em dois anos de atuação, o Instituto, fundado pelas advogadas Eduarda Garcia e Lidiane Padilha, tornou-se referência no enfrentamento ao racismo e no acesso à justiça. A proposta é simples e urgente: criar pontes onde a estrutura costuma erguer muros.
“O Instituto Caminho nasceu da necessidade de aproximar a população negra dos seus direitos. Muitas pessoas chegam aqui sem entender o que receberam — uma intimação, uma decisão judicial — e não têm condições de pagar um advogado. Nosso trabalho é orientar, explicar e acompanhar”, afirma Lidiane Padilha, Diretora de Desenvolvimento Institucional e Sustentabilidade.
A motivação veio da dor: o caso Jane Beatriz, promotora popular da Cruzeiro, morta dentro de casa durante uma operação policial. A ausência de acolhimento institucional e a recorrência de denúncias envolvendo violência policial e falhas judiciais acenderam o alerta. A partir dali, o grupo estruturou uma atuação permanente guiada por três eixos: acesso à justiça; desencarceramento e segurança pública; juventude negra e bem-viver.
Se as políticas públicas não chegam às periferias, o Instituto opera no sentido inverso: leva atendimento jurídico, informação e formação para onde as pessoas já estão.
“Trazer formação para dentro do território transforma tudo. A pessoa não precisa pegar dois ônibus ou reorganizar toda a rotina para participar. É um trabalho de base, feito respeitando o tempo e a realidade das comunidades”, reforça Michel Nascimento, Administrativo e Financeiro.
Além do atendimento jurídico, o Instituto trabalha para que pessoas negras se reconheçam como sujeitos de direito. Autonomia financeira, acesso ao conhecimento e protagonismo político fazem parte da metodologia. A pergunta que orienta o trabalho é direta:
Quem tem o direito de acessar seus direitos?
“O juridiquês afasta. Às vezes, o medo vem justamente de não entender o que está sendo decidido sobre a própria vida. Nosso papel também é traduzir o direito para uma linguagem simples e acessível”, explica Lidiane.
Um exemplo do impacto concreto do trabalho é o caso de Rafael Francisco de Melo, estudante de Saúde Coletiva da Ufrgs, discriminado ao solicitar o direito de colar grau usando toga branca, por motivo religioso. O Instituto assumiu a orientação jurídica e garantiu que seu direito fosse reconhecido. A vitória transformou um episódio de exclusão em precedente.
No eixo de segurança pública, o Instituto desenvolve o projeto Caminhos da Segurança Pública, que mapeia e analisa proposições legislativas em tramitação e avalia seus impactos sobre a população negra. O estudo será apresentado na Assembleia Legislativa do RS no dia 14 de novembro, às 18h30, ampliando o debate com movimentos sociais, pesquisadores e juventudes.
A profundidade do trabalho exige sustentabilidade. Hoje, o Instituto opera com recursos de editais, doações e o apoio de cerca de 20 voluntários. Mesmo com limitações, mantém uma diretriz clara: “Preferimos atender menos pessoas, mas garantir acompanhamento real e resultados concretos.” explica Janove, diretor de Comunicação da instituição.
No silêncio entre uma sentença e o impacto que ela provoca na vida de alguém, o Caminho se coloca como ponte — ponte negra, coletiva e viva.
No Brasil, o setor da beleza é uma das portas de entrada para o empreendedorismo feminino. Em muitos bairros, mulheres começam trançando cabelos em casa, atendendo vizinhas e amigas para complementar renda, sem formalização, sem precificação e sem apoio para gestão.
É nesse contexto que nasce o Amewà, projeto de formação profissional criado pelo Instituto Caminho.
“Amewà significa ‘especialista em beleza’ em iorubá. Na cosmovisão africana, beleza é caráter, é como nos relacionamos com o outro. Não é só um penteado; é autoestima, identidade e ancestralidade”, explica Janove.
A primeira turma reuniu 13 mulheres trancistas entre mais de 50 inscritas. O objetivo: capacitar, formalizar e transformar trabalho em negócio. Muitas cobravam valores muito baixos e não se reconheciam como empreendedoras.
“Tivemos trancistas que cobravam R$40 pela trança e, depois da formação, entenderam que podiam cobrar R$200. Elas passaram a se ver como donas de negócio, não como alguém que faz bico.” destaca Michel Nascimento.
Além da técnica, o curso ensina precificação, fluxo de caixa, construção de marca, contrato e visão de futuro. As próximas turmas devem expandir para barbeiros, nail designers e lash designers — já há lista de espera.
Enquanto o mercado da moda se apropria da estética de tranças, turbantes, dreadlocks e cabelos naturais, o Amewà devolve o protagonismo à comunidade negra: “Há um mercado lucrativo em torno do cabelo negro. O Amewà garante que essa renda volte para quem sempre cuidou dessa cultura.”
Quando uma mulher negra entende que seu trabalho tem preço e história, ela não apenas empreende: ela reorganiza a própria economia e cria futuro.