“Essa é a grande crise que vivemos no Brasil, a da invasão da competência legislativa pelo Poder Judiciário”, avalia o jurista Ives Gandra Martins (Imagem: Edilson Dias)
A crescente politização do Poder Judiciário brasileiro e o ativismo dos tribunais superiores têm provocado preocupações entre juristas, empresários e estudiosos do Direito. O tema foi novamente abordado no âmbito da última reunião do Conselho Superior de Direito da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP), que vem acompanhando com atenção o fenômeno da interferência entre as funções de Estado, com impacto direto sobre a previsibilidade normativa, a segurança jurídica e o equilíbrio entre os Poderes.
De intérprete legal a protagonista político
Na avaliação de Ives Gandra Martins, presidente do Conselho, a tendência à hipertrofia que vem sendo exercida por representantes do Judiciário — especialmente do Supremo Tribunal Federal (STF) — ultrapassa, em diversos momentos, a função constitucional de guardião da Carta Magna. Em decisões recentes, a Corte passou a atuar como instância revisora de políticas públicas e condutas políticas, transformando-se em agente central do debate público e, por vezes, em substituto da vontade do legislador.
Esse cenário exacerba o que os juristas denominam “supremacia judicial”, um desequilíbrio que inverte a lógica da separação dos Poderes e compromete a autonomia das instituições democráticas. “Quando o Judiciário se converte em protagonista político, ele se distancia de sua função essencial: a de assegurar o império da lei com imparcialidade e previsibilidade”, alertou o jurista.
Instituições em xeque
A consequência mais imediata da politização é a erosão da segurança jurídica, valor essencial para o funcionamento do Estado Democrático de Direito e para a estabilidade das relações econômicas e sociais. “Essa é a grande crise que vivemos no Brasil, a da invasão da competência legislativa pelo Poder Judiciário”, avaliou.
A alternância de entendimentos conforme o contexto político e a personalização das decisões enfraquecem a confiança de cidadãos e empresas no sistema de Justiça. “A incerteza quanto à aplicação das normas e a percepção popular de seletividade jurisdicional afastam investimentos e desestimulam o exercício pleno das liberdades civis e econômicas”, acredita Gandra Martins.
Fenômeno de causas múltiplas
Diferentes estudos do Conselho identificam os principais fatores que contribuem para o aumento da judicialização da política e da politização da Justiça, como a ampliação da Constituição de 1988, que detalha políticas públicas, multiplicando as hipóteses de controle judicial; a omissão do Legislativo em temas sensíveis, empurrando para o Judiciário o papel de mediador de conflitos morais e sociais; e a demanda crescente da sociedade por respostas imediatas, incentivando decisões judiciais com base em expectativas políticas, em vez de critérios estritamente jurídicos.
Esse conjunto de elementos, tem levado à consolidação de uma cultura de judicialização permanente, em que o Poder Judiciário atua como árbitro de todas as controvérsias — jurídicas, políticas e até administrativas. “O Poder Legislativo está apático, enquanto o Supremo reescreve a Constituição Federal”, resumiu o jurista.
Urge o reequilíbrio institucional
O conselho defende a recuperação do princípio da autocontenção judicial, expressão da prudência e da deferência do Judiciário às instâncias democraticamente eleitas. A consolidação da democracia exige um Judiciário técnico, moderado e independente, que atue com firmeza na defesa da Constituição, sem substituir a soberania popular nem a função representativa do Parlamento.
“Quando se tem a interpretação dos múltiplos conceitos constitucionais por um grupo elitista, que se considera porta-voz do povo, o que nós temos é uma imposição que, vinda do Judiciário, não admite contestação. Então, aquilo que se pretende como defesa da democracia, se transforma na defesa de uma ditadura”, concluiu Gandra Martins.
A FecomercioSP se posiciona a favor da reflexão sobre os desafios institucionais do país, promovendo estudos que articulam o Direito, a economia e a ética pública. Ao tratar da extrapolação de competência pelo Judiciário, o conselho reafirma sua missão de contribuir para o aprimoramento do Estado de Direito, defendendo um sistema de Justiça previsível, estável e em harmonia com os fundamentos da democracia representativa.