Enquanto o marco regulatório de Inteligência Artificial (IA) avança, o setor produtivo alerta para as dificuldades que uma legislação não equilibrada pode trazer para o desenvolvimento do País. Em evento promovido pela Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado São Paulo (FecomercioSP) em conjunto com a Comissão Especial de IA da Câmara dos Deputados, na última sexta-feira (24), representantes dos setores do Comércio e dos Serviços paulistas apontaram a necessidade de aprimorar o Projeto de Lei (PL) 2.338/23, que trata da regulação da IA.
O pedido é que haja mais harmonização entre a necessária proteção de direitos e o incentivo à inovação e à competitividade dos negócios nacionais. O seminário O Marco Regulatório da Inteligência Artificial e suas Implicações para o Setor Produtivo contou com a participação das deputadas federais Luísa Canziani (PSD/PR) e Adriana Ventura (Novo/SP) — respectivamente, a presidente e a vice-presidente da comissão —, além dos deputados Aguinaldo Ribeiro (PP/PB), relator do projeto, Luiz Philippe de Orleans e Bragança (PL/SP) e David Soares (União/SP), titulares do colegiado.
O evento também reuniu Samanta Santos de Oliveira, DPO do Mercado Livre, e Caroline Rocabado, Deputy DPO and Privacy Governance Lead da Dasa, bem como executivos de empresas de pequeno e médio portes, que abordaram o uso da IA em seus empreendimentos. A principal preocupação do setor produtivo é que a regulação da tecnologia acabe impondo impasses ainda maiores ao ecossistema digital, inibindo investimentos e o desenvolvimento tecnológico.
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Regulação excessiva pode comprometer inovação na saúde
Ao comentar os impactos sobre os serviços de saúde, Caroline, da Dasa — multinacional brasileira focada em medicina diagnóstica —, destacou que um dos temores do setor é justamente o fato de o projeto classificar quase toda aplicação de IA na área como de alto risco.
Segundo ela, o texto deveria priorizar a conformidade com as normas já estabelecidas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que classifica os riscos em quatro níveis: baixo, médio, alto e máximo. Da forma como está, o PL faz com que aplicações hoje consideradas de pequeno risco pela Anvisa passem a ser enquadradas como de alto risco. “Isto é, a carga regulatória já está adequada pela Anvisa, e o projeto traz uma sobreposição significativa de custos de conformidade para os setores público e privado na área da Saúde”, afirmou.
Além da sobreposição de normas, que impõe medidas excessivas para dispositivos e softwares de baixo e médio riscos — o que pode gerar insegurança jurídica e exigir que uma mesma tecnologia cumpra duas metodologias diferentes —, o projeto também impõe uma extensa lista de obrigações de governança para sistemas de alto risco. Sem uma articulação com as normas setoriais já existentes, isso pode trazer burocratização excessiva e prejudicar o processo de inovação tecnológica.
Regulação precisa ser pensada à luz de legislações já existentes
Rony Vainzof, consultor de proteção de dados da FecomercioSP, pontuou que a regulação não é inimiga da inovação, mas se não for realizada com a cautela e a atenção necessárias, pode comprometê-la. De acordo com o especialista, é preciso ponderar quais riscos a ferramenta traz que já não estão contemplados nas legislações existentes.
“Esse é um ponto muito relevante, porque, se estamos falando de relações de consumo, temos o Código de Defesa do Consumidor. Se não é relação de consumo, aplica-se o Código Civil. Se diz respeito a dados pessoais, há a Lei Geral de Proteção de Dados”, comentou. “Qual é o grande risco que a IA traz que não está contemplado e não pode ser estressado nas legislações e nos órgãos competentes?”, provocou.
A deputada Adriana reconheceu a necessidade de cautela ao desenvolver um marco regulatório que afete o setor. “Precisamos ser muito cuidadosos na hora de regulamentar, porque isso pode atrapalhar a inovação na Saúde — que é a maneira de tornar o SUS sustentável”, disse. “Está faltando a participação de quem faz na ponta”, observou, destacando a importância de incluir essas pessoas no processo para ponderar e avaliar o que é (ou não) possível fazer.
Cautela e mais debate
Adriana também lembrou da importância do amadurecimento das discussões, lembrando que, no Brasil, o diálogo sobre o tema acontece há, pelo menos, dois anos. “A União Europeia fez e depois voltou atrás, mas ficou três, quatro anos ouvindo as pessoas. Não dá para regular assim”, afirmou.
Vainzof reforçou que o projeto atual pode ser aprimorado. “Ainda existem pontos de melhoria”, comentou, apontando as obrigações previstas em aspectos como treinamento da tecnologia, direitos autorais e transparência, além da exigência de supervisão e revisão humanas. O consultor da FecomercioSP ainda afirmou que a Câmara tem uma grande responsabilidade ao ouvir as sugestões do setor produtivo e garantir prazo hábil para que as modificações no texto do projeto possam ser devidamente estudadas.
“Sabemos que haverá modificações na proposta. Esse é o papel da comissão, mas cada modificação, quando envolver a regulação de uma tecnologia, precisa ser muito bem ponderada. Nós necessitaremos de prazo para avaliar essas mudanças, porque podem causar reflexos importantes.”
Uso da IA torna medicina mais precisa e eficiente
Na área da Saúde, a tecnologia tem sido usada para tornar a medicina mais preditiva, preventiva e personalizada. Alguns exemplos são as aplicações para leituras de pedidos médicos (com precisão de 76%) e automação de exames e análises clínicas (com aumento de 12% na produtividade), além de revisão de laudos, aceleradores de ressonância magnética e uso aplicado em pesquisas de doenças raras, trazendo mais precisão diagnóstica e eficiência operacional.
Robôs realizam tarefas como coletas de amostras, preparação de reagentes e transporte de materiais, reduzindo erros humanos e liberando os profissionais para atividades menos repetitivas e mais analíticas. Com isso, também se ganha tempo, melhora-se a qualidade dos diagnósticos e gera-se mais eficácia na gestão dos recursos. Tudo isso sem impactar a autonomia do médico e trazendo mais conforto ao paciente.
“Nós temos a maior esteira de processamento de exames da América Latina. E para garantirmos esse processamento, precisamos automatizar”, explicou a representante da Dasa. “Sem automação, é muito difícil garantir eficiência, qualidade e padronização”, completou. A empresa, que realiza 470 milhões de exames ao ano, tem mais de 13 milhões de usuários e 25 milhões de pacientes atendidos por ano.
Uso da IA nas MPEs
Também participaram do evento representantes da FecomercioSP, como o presidente em exercício da Entidade, Ivo Dall’Acqua Junior; o presidente do Conselho de Economia Digital e Inovação, Andriei Gutierrez; a economista e assessora técnica Kelly Carvalho; e o sócio da VLK Advogados, Caio Lima.
Ao fim do encontro, Gutierrez entregou a Adriana as sugestões da Federação para uma regulação eficiente, segura e equilibrada da IA [confira as propostas aqui]. O Conselho de Economia Digital e Inovação também apresentou aos parlamentares sondagem inédita da FecomercioSP sobre o nível de maturidade em IA nas Micro e Pequenas Empresas (MPEs).
