O Brasil provou que tem capacidade de sair do Mapa da Fome em tempo recorde, mas precisa fortalecer a agricultura familiar e assegurar que a comida no prato dos brasileiros seja saudável e acessível (Crédito: Problemas Brasileiros)
No dia da posse do seu terceiro mandato, em janeiro de 2023, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva se emocionou ao falar sobre a fome no Brasil. “Mães garimpando o lixo em busca de alimento para seus filhos (…) Fila na porta dos açougues em busca de ossos para aliviar a fome”, disse. A promessa de livrar milhões de brasileiros da fome veio com prazo: tirar o País do Mapa da Fome até 2030 — os mais otimistas diziam que sairíamos até o fim de 2026.
Até aquele momento, os últimos dados da Organização das Nações Unidas (ONU) apontavam que, desde 2021, 8,4 milhões de brasileiros conviviam com o risco de subnutrição ou de falta de acesso suficiente à alimentação desde 2021. Era o equivalente a 3,9% da população — para sair do ranking, a ONU exige que esse número chegue a, no máximo, 2,5% da população.
A implementação de políticas públicas mudou o cenário, e a meta foi batida bem antes do previsto. Em julho deste ano, veio o anúncio da ONU: a fome regrediu e, pela segunda vez, depois de um vai-volta, o Brasil estava fora do Mapa da Fome.
Para definir se uma nação entra ou sai do mapa, a ONU utiliza a Prevalência de Subalimentação (PoU), indicador que mede a proporção da população cujo consumo calórico está abaixo do mínimo necessário. O cálculo considera a disponibilidade de alimentos (produção, importação e exportação), a distribuição de renda e o consumo médio de calorias por pessoa. “Não é trivial entrar e sair do Mapa da Fome. Há um processo de trabalho, de melhorias de acessos e dos indicadores de disponibilidade de alimentos que interferem nisso”, explica Poliana Palmeira, vice-coordenadora da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan) e coordenadora do Núcleo de Pesquisa e Estudos em Nutrição e Saúde Coletiva (Núcleo Penso), da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG).
Idas e vindas
A partir de 2016, houve uma sequência de desmontes de políticas públicas de combate à fome. “Foi um momento drástico de mudanças. Saímos de uma espécie de reformismo com sensibilidade social para um liberalismo irresponsável”, opina o sociólogo Rafael Costa, coordenador da Cátedra Celso Furtado da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP). O pesquisador justifica o uso da palavra “irresponsável” porque aquela se tornou a nova diretriz — motivada por uma crise econômica grande — que, a partir dessas mudanças de rumo, entendia que a fome poderia ser internalizada pelos mais pobres.
O período de retrocesso social começou com a aprovação do teto de gastos, naquele mesmo ano, que congelou por duas décadas os investimentos em áreas como Saúde, Educação e Assistência Social. A medida corroeu gradualmente o orçamento de programas fundamentais para garantir segurança alimentar, como o Bolsa Família, a merenda escolar e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA).
Ricardo Mota, gerente de Inteligência Estratégica do Pacto Contra a Fome, pontua que o PAA é um programa fundamental por ampliar o acesso a uma alimentação predominantemente saudável. O PAA tem, ainda, uma conexão forte com o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que interfere diretamente na segurança alimentar no ambiente escolar. “Não apenas favorece uma alimentação mais saudável para públicos vulneráveis, como também fortalece muito a renda do pequeno agricultor”, explica.
Criado em 2003, o PAA conecta a agricultura familiar com o combate à fome — o governo compra alimentos diretamente de pequenos produtores para destiná-los a escolas, creches, hospitais, cozinhas comunitárias e bancos de alimentos. Com os cortes orçamentários, o programa perdeu fôlego e deixou de cumprir esse papel estratégico.
Em 2017, veio a Reforma Trabalhista, que precarizou ainda mais os empregos e atingiu em cheio a renda, principal forma de colocar-se comida à mesa. E, em 2019, o governo extinguiu o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). Desde os anos 2000, este era o principal espaço de participação social na formulação e no monitoramento de políticas de combate à fome — foi graças ao Consea que o PAA e o Bolsa Família ganharam força.
Sem diálogo com a sociedade civil, a gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro substituiu o Bolsa Família pelo Auxílio Brasil. Feito às pressas, sem planejamento, o dinheiro não alcançou milhares de famílias. Para piorar, veio a pandemia. Em 2022, segundo a Rede Penssan, cerca de 33 milhões de brasileiros passavam fome.
O sociólogo Costa destaca outro ponto que levou à piora nos índices de insegurança alimentar: o gás da cozinha. “Os preços subiram descontroladamente porque a Petrobras mudou a política. O preço do gás foi indexado aos preços internacionais, causando um prejuízo muito grande para as famílias mais pobres”, lembra.
Para retomar o controle sobre a fome no Brasil, não houve reinvenção. Bastou reerguer os programas sociais desmontados nos anos anteriores. E, recentemente, a Petrobras anunciou a volta ao mercado de gás de cozinha — a estatal não o distribuía desde 2020, após a venda da Liquigás.
“O principal programa, o Bolsa Família, que é referência mundial, cresceu nos últimos anos tanto em número de beneficiários quanto em orçamento. Isso, sem dúvida, teve um peso muito grande na saída do Brasil do Mapa da Fome”, aposta Mota. O PAA também teve um salto orçamentário: de R$ 90 milhões, em 2022, para R$ 356 milhões, em 2023, e R$ 794 milhões, em 2024. Com o PNAE, a mesma coisa: de R$ 3 bilhões, em 2022, para R$ 5,3 bilhões, no ano seguinte.
Esses fatores, unidos à recente desaceleração da inflação e à forte queda do desemprego, aumentou a quantidade de comida no prato dos brasileiros. E tirou o Brasil do Mapa da Fome.
Insegurança ainda na mesa
Embora o Brasil tenha saído do Mapa da Fome — que considera apenas a subalimentação crônica em até 2,5% da população —, os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que 28,5 milhões de cidadãos ainda enfrentam insegurança alimentar moderada ou severa. No primeiro caso, adultos reduzem a quantidade do que comem para priorizar filhos; no segundo, a fome atinge também as crianças.
“Existe aqui uma contradição. O Brasil é um dos principais produtores de alimentos do mundo [o quarto maior produtor] e também um dos que mais tem fome”, observa Costa. “Como já dizia a teoria de Josué de Castro, a pobreza e a fome não são questões da natureza. Os esquimós, que vivem em regiões mais severas, não passam por isso. Os beduínos, no deserto, também não. São decisões políticas”, ressalta. O pesquisador aponta que as terras que deveriam produzir alimento são usadas para plantar produtos para a exportação, ou seja, para alimentar o gado que será também exportado. “A prioridade sempre é abastecer o mercado externo. Isso explica a fome no País”, completa.
Até porque não basta somente garantir comida à mesa, é preciso avaliar a qualidade desses alimentos. E isso afeta diretamente o conceito de soberania alimentar, que é o direito dos povos de definir suas políticas alimentares e agrícolas, com acesso a alimentos de qualidade.
O relatório O Estado da Segurança Alimentar e da Nutrição no Mundo (SOFI, na sigla em inglês) de 2025 compara dados de insegurança alimentar e sobrepeso infantil. No Brasil, assim como em todo o mundo, há um aumento expressivo do consumo de alimentos ultraprocessados, por conta dos preços menores, e do aumento da obesidade entre crianças. “O consumo de alimentos deletérios à saúde tem aumentado nos últimos anos. Os mais saudáveis, como os alimentos in natura, minimamente processados, estão em queda. O consumo de ultraprocessados está ligado a doenças, e isso é preocupante. Antes as pessoas morriam de fome. Hoje, morrem também por se alimentarem mal”, afirma Mota.
Algumas políticas públicas recentes tentam reduzir o consumo desses alimentos. No ano passado, o governo aprovou a nova lista de produtos da cesta básica, priorizando alimentos in natura ou minimamente processados, e a reforma tributária prevê a isenção de impostos para os itens contemplados nessa lista, na tentativa de reduzir os preços.
Para que o Brasil fuja de vez desse “efeito sanfona” de oscilações nos indicadores da fome, é preciso também fortalecer a agricultura familiar e mitigar os efeitos das mudanças climáticas. “O acesso a mecanismos de extensão rural, de acesso a crédito e mercado, é muito prejudicado para os pequenos agricultores, aqueles da agricultura familiar. São eles, basicamente, que levam o alimento in natura, o alimento saudável, para a mesa dos brasileiros”, defende Mota.
Recentemente, o Brasil institucionalizou a nível nacional o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), que garante o crédito aos pequenos produtores. “Estamos evoluindo. No entanto, muitas vezes a política está disponível, mas o agricultor não tem acesso à informação, nem sabe que tem o direito. Queremos olhar para isso com mais atenção”, enfatiza Mota, do Pacto Contra a Fome.
O Brasil provou que tem capacidade de sair do Mapa da Fome em tempo recorde, mas, para não voltar, é preciso ir além — blindar políticas públicas como o Bolsa Família e o PAA, fortalecer a agricultura familiar e assegurar que a comida no prato dos brasileiros seja saudável e acessível. Só assim as idas e vindas nos indicadores da fome deixarão de ser uma ameaça.
Matéria originalmente publicada no site da Revista Problemas Brasileiros, uma realização da Federação.
A FecomercioSP acredita que a informação aprofundada é um instrumento fundamental de qualificação do debate público sobre assuntos importantes não só para a classe empresarial, mas para toda a sociedade. É neste sentido que a entidade publica, bimestralmente, a Revista Problemas Brasileiros.
Inscreva-se para receber a newsletter e conteúdos relacionados
Fonte Oficial: https://www.fecomercio.com.br/noticia/o-vaivem-do-brasil-no-mapa-da-fome