É numa casa simples, cheia de cadeiras ocupadas por um grupo de pessoas com vontade de falar os anseios da rua, que um jornal é produzido há 25 anos. Pode até parecer uma cena comum de qualquer redação espalhada por aí, mas não é. Trata-se de um jornal construído por aqueles que, normalmente, são ignorados e marginalizados, mas que, devido a uma iniciativa única no mundo, têm boca para falar. Como eles mesmos se declaram: “somos o povo da rua!”, os que fazem e vendem o jornal Boca de Rua.
A Casa Alice é o espaço que acolhe as dezenas de colaboradores, os chamados ‘repórteres da rua’, que participam de todas as etapas da produção: da discussão de pauta à edição final, passando por entrevistas, textos, fotos e vídeos para as redes sociais. Foi em uma dessas reuniões, marcadas por falas diretas e ideias de pauta geniais, que nossa reportagem pôde testemunhar o funcionamento vivo do jornal sem hierarquias. Não existe chefia, existe parceria e horizontalidade.
Criado em 2000, na Porto Alegre efervescente do Fórum Social Mundial, e vinculado à ONG Alice, Agência Livre para Informação, Cidadania e Educação, o jornal Boca de Rua nasceu de um encontro entre jornalistas recém-formados e pessoas em situação de rua da Capital. “A Alice surgiu um ano antes com o propósito de trabalhar com grupos que não tinham visibilidade na mídia nem registro histórico de suas vidas. O Boca é o primogênito”, explica a editora e idealizadora do Boca, a jornalista Rosina Duarte – carinhosamente chamada de mãe por alguns dos participantes.
“O grupo se autocoordena, eu apenas organizo as ideias”, explica a editora do Boca, Rosina Duarte
TÂNIA MEINERZ/JC
A iniciativa, que começou na Praça do Cachorrinho, logo mostrou que não se tratava de “ajudar alguém”, mas de aprender com aquela realidade. “Nós precisávamos nos alfabetizar nesse universo. O Boca nasceu dessa descoberta conjunta de linguagem e franqueza, muitas vezes brutal”, lembra. “Ele não é um projeto social, como muitos pensam, e sim uma comunidade de trabalho e renda. De redução de danos do silêncio e da solidão que as pessoas da rua passam”, explica Rosina.
Cada edição leva cerca de três meses para ficar pronta. O grupo se reúne semanalmente, discute pautas e relatos, escreve coletivamente e revisa cada texto até a versão final. Nada é publicado sem que todos leiam e aprovem. A diagramação é feita por Cristina, designer que acompanha o projeto desde o primeiro número, enquanto Rosina organiza e edita os conteúdos.
O funcionamento do Boca também desafia a lógica das redações tradicionais. Não há uma hierarquia rígida nem uma figura central de comando: as reuniões acontecem em assembleia, onde cada voz disputa espaço, às vezes em meio a discussões acaloradas e falas atravessadas. É nesse ambiente vivo e visceral que o jornal se constrói, com uma espécie de autorregulação coletiva que garante tanto a liberdade de expressão quanto a responsabilidade pelo que será publicado. Como resume Rosina, “o grupo se auto-coordena, eu apenas organizo as ideias”, afirma.
O grupo se reúne semanalmente, discute pautas e relatos, escreve coletivamente e revisa cada texto até a versão final. Nada é publicado sem que todos leiam e aprovem
TÂNIA MEINERZ/JC
O financiamento continua sendo um dos maiores desafios. Para garantir a independência editorial, o Boca não aceita verbas de políticos nem de empresas privadas. A impressão é custeada por assinaturas virtuais, doações de apoiadores e eventos promovidos na Casa Alice, como saraus e feiras. Foi também graças a doações que a ONG conseguiu, há cerca de três anos, ter uma sede própria no bairro Cidade Baixa, em Porto Alegre, após mais de duas décadas sem endereço fixo.
A impressão é custeada por assinaturas virtuais, doações de apoiadores e eventos promovidos na Casa Alice
TÂNIA MEINERZ/JC
Se para Rosina o Boca é “uma pequena revolução”, para os repórteres que fazem ele diariamente, é também transformação pessoal. Michelle Marques dos Santos, que participa como repórter desde a primeira edição, descobriu o projeto quando vivia nas ruas. “O Boca me ajudou em muitas coisas. Primeiro, para eu poder entender que no meio das pessoas eu também sou gente. Poder conversar, mostrar o meu trabalho, isso me deu muito orgulho”, conta.
Ao longo dos anos, Michelle viu sua trajetória se misturar com a do jornal. Esteve em capas, assinou títulos escolhidos coletivamente, participou de entrevistas e debates públicos. Para ela, cada edição é motivo de pertencimento. “Quando a gente vê o jornal pronto, sabe que deixou uma marca. Eu lembro quando minha foto saiu na capa, em 2007. Foi emocionante. Pensei: a rua também pode aparecer de outro jeito, não só nas notícias ruins”, diz.
Hoje, Michelle reconhece que o Boca a ajudou a encontrar dignidade e identidade. “Eu já vivi muitas dificuldades, mas o Boca me mostrou que a gente pode falar, pode denunciar, pode ser ouvido. Eu sou repórter de rua e tenho orgulho disso. Eu ajudo a contar histórias que ninguém mais contaria”, relata.
“O Boca é isso: uma boca aberta para gritar o que não é dito”, afirma Rosina.
TÂNIA MEINERZ/JC
Segundo Rosina, esse é o maior legado do jornal nestes 25 anos: mostrar que a vida não é uma folha plana, mas um caleidoscópio de experiências e vozes. “Absolutamente ninguém deve ser subestimado. A sociedade não sabe o que está perdendo quando prescinde dessas pessoas que sobreviveram a coisas que nós não sobreviveríamos. O Boca é isso: uma boca aberta para gritar o que não é dito. E uma vez que você entra aqui, nunca mais é a mesma pessoa”.
Ao completar 25 anos, o Boca de Rua segue como um espaço de cidadania, resistência e humanidade. É comum andar pelas ruas da Capital e ver algum de seus repórteres vendendo mais uma edição desse produto que quem carrega nas mãos, carrega a história de um povo invisibilizado, mas nunca vítima.
Confira as demais fotografias feitas pela fotojornalista Tânia Meinerz durante a reunião de pauta do Jornal Boca de Rua:
Reunião para pautas do Jornal Boca de Rua, feito por moradores de rua, com apoio da ALICE (Agência Livre para a Informação, a Cidadania e a Educação). Jornalista Rosina Duarte. Responsabilidade Social.
TÂNIA MEINERZ/JC
Reunião para pautas do Jornal Boca de Rua, feito por moradores de rua, com apoio da ALICE (Agência Livre para a Informação, a Cidadania e a Educação). Jornalista Rosina Duarte. Responsabilidade Social.
TÂNIA MEINERZ/JC
Reunião para decidir as pautas é feita com apoio da Agência Livre para a Informação, a Cidadania e a Educação
TÂNIA MEINERZ/JC
Reunião para pautas do Jornal Boca de Rua, feito por moradores de rua, com apoio da ALICE (Agência Livre para a Informação, a Cidadania e a Educação). Jornalista Rosina Duarte. Responsabilidade Social.
TÂNIA MEINERZ/JC
Exemplares são vendidos por pessoas em situação de rua em Porto Alegre
TÂNIA MEINERZ/JC
Fonte Oficial: https://www.jornaldocomercio.com/cadernos/empresas-e-negocios/2025/08/1216198-ha-25-anos-a-rua-tem-boca-para-falar.html