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Prato nacional em caldo de ‘fake news’


A gastrônoma e historiadora Camila Landi fala sobre as origens da feijoada (Crédito: Revista Problemas Brasileiros)

Você certamente já ouviu essa história, cheia de contornos românticos: antigos senhores descartavam para os escravizados as carnes menos nobres dos porcos, que eram aproveitadas em um cozido de feijão. Estaria aí a origem da feijoada, considerada o prato nacional.

É mentira.

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“Trata-se de uma história inventada”, afirma a gastrônoma e historiadora Camila Landi, professora e coordenadora do curso de Tecnologia em Gastronomia da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Mas uma mentira que não reduz em sabor ou importância o cozido que se tornou ícone da culinária brasileira. Até porque, tirada a fake news desse caldo riquíssimo, ainda ficam as miscigenações cultural e histórica que nos fazem brasileiros. “De fato, a feijoada nada mais é que o resultado da miscigenação étnica do Brasil: indígenas, europeus e africanos — é a mistura das técnicas de cocção europeias em pratos preexistentes, como o feijão caldoso, somadas aos ingredientes europeus, africanos e nativos”, complementa.

Para compor a legítima feijoada completa, entram em cena a farinha de mandioca — consumida inicialmente com feijão em grãos cozido pelos indígenas —, o arroz, que vem de fora, e os demais pertences que se incorporaram com o tempo. Camila lembra, ainda, que o prato é uma releitura nacional dos cozidos de feijão que já existiam na Europa, como o cassoulet francês e o pucheiro espanhol. Além, é claro, das próprias feijoadas portuguesas, nas quais há caldos até com bacalhau.

“A origem não é brasileira, é portuguesa, como muito de nossa cozinha”, salienta o jornalista Rafael Tonon, autor do livro As revoluções da comida: o impacto de nossas ecolhas à mesa (Todavia, 2021) e coordenador do mestrado em Jornalismo Gastronômico do Basque Culinary Center, na região basca da Espanha. “Como jornalista brasileiro em Portugal, posso atestar a origem da feijoada em como os portugueses criaram o conceito”, comenta. “O que está em jogo é que todas as receitas passam por adaptações quando chegam a outras paragens, e foi o que aconteceu com a nossa feijoada. Tornou-se uma nova versão da feijoada portuguesa”, confirma.

Cozido à brasileira

A mais visível modificação está no ingrediente principal, o feijão. Se, nos pratos europeus, as variedades brancas e marrons do grão marcam presença, a receita brasileira lança mão do feijão-preto, cepa da leguminosa nativa do continente americano.

Camila chama a atenção para a importância de quebrarmos o mito inventado do surgimento da feijoada. “É importante para o conhecimento correto da população e para fortalecer o quão importante é, para mim, historiadora da área, mostrar os fragmentos existentes em hibridismos culinários e culturais, os quais compõem a história da alimentação do nosso país e das nossas cidades”, ressalta.

Ao contrário da lenda, aliás, o prato não tem nada a ver com as camadas mais pobres da sociedade. “Falam que os produtos eram menores, carnes de menor valor, e, por isso, destinadas aos escravos. Na verdade, esse tipo de cozinha de miúdos sempre foi muito comum na culinária europeia”, explica Tonon.

No Brasil, os registros mais antigos da receita remontam ao século 19 e estão associados à elite. Em anúncio publicado pelo jornal Diário de Pernambuco, em 2 de março de 1827, o restaurante recifense Locanda da Águia d’Ouro servia, às quintas-feiras, uma “excelente feijoada à brasileira” por “preço cômodo”. Seis anos mais tarde, o Hôtel Théatre, também em Recife, contava com o prato em seu cardápio fixo.

Da mesa aos livros

Crônicas da época também falam sobre a iguaria. O viajante e músico francês Oscar Comettant (1819–1898) descreveu o alimento que “compõe-se de carne salgada, seca ao sol, de feijões pretos, pequenos, mas muito bons, de toucinho, e para coadunar tudo, de uma farinha muito grossa, que se faz com a raiz da mandioca”, detalhando que “da mistura desses ingredientes forma-se uma espécie de papa escura, de um aspecto repugnante, mas de um gosto assaz agradável”.

O jornalista, político e religioso pernambucano Miguel do Sacramento Lopes Gama (1793–1852), mais conhecido como Padre Carapuceiro, escreveu que era “prática usual e comezinha” de algumas famílias “converter em feijoada os fragmentos do jantar da véspera, ao que chamam enterro dos ossos”. Segundo relatou Gama, “lançam-se em uma grande panela ou caldeirão restos de perus, de leitões assados, fatacões de toucinho e de presunto, além disto bons vassalhos de carne seca, vulgo ceará. Tudo vai de mistura com o indispensável feijão: fica tudo reduzido a uma graxa!”.

Nas altas rodas do Rio de Janeiro, a popularização costuma ser creditada ao restaurante G. Lobo, que funcionou no centro da cidade de 1884 a 1905. Muitos pesquisadores afirmam que foi ali que a feijoada completa ganhou fatias de laranja e couve refogada. No livro Baú de ossos (Cia. das Letras, 2012), em que reconstitui a trajetória de seus antepassados, o escritor Pedro Nava (1903 –1984) cita a importância do restaurante carioca. Mas ele ressalta que a feijoada não pode ser considerada de “criação espontânea”, acreditando que o preparado brasileiro seja a “evolução venerável” de “pratos latinos como o cassoulet francês”. Na capital fluminense, a receita é considerada patrimônio imaterial desde 2013.

A historiadora Camila reconhece, porém, que é praticamente impossível determinar exatamente quando e onde esse símbolo culinário surgiu, uma vez que a criação do prato provavelmente se deu em um processo lento de adaptação e acréscimo de ingredientes. “Mas gosto de reforçar que a feijoada passou a ser consumida pela elite no século 19, dentro dos restaurantes frequentados por essa elite no Brasil”.

E à medida que o consumo foi se tornando tradicional nas altas classes sociais, a feijoada passou a “dar certo”, no sentido de ser eternizada como um clássico. “Todo prato ou hábito que nasce da elite, em palácios, tende a ser considerado como de mais prestígio e valor”, pontua Camila.

Outra explicação para o sucesso da feijoada está nos ingredientes “do gosto dos brasileiros e de hábitos antigos”, reforça Camila, lembrando que já havia casamentos de sucesso do feijão com a farinha de mandioca, e do arroz com o feijão, além do consumo de carne suína. A facilidade de acesso a esses ingredientes também justifica a popularização, conclui.

Matéria originalmente publicada no site da Revista Problemas Brasileiros, uma realização da Federação.

A FecomercioSP acredita que a informação aprofundada é um instrumento fundamental de qualificação do debate público sobre assuntos importantes não só para a classe empresarial, mas para toda a sociedade. É neste sentido que a entidade publica, bimestralmente, a Revista Problemas Brasileiros.

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Fonte Oficial: https://www.fecomercio.com.br/noticia/prato-nacional-em-caldo-de-fake-news

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