INTRODUÇÃO – Toda empresa nasce de uma ideia – mas cresce a partir de uma cultura. E essa cultura, na maioria dos casos, é o reflexo direto da personalidade de seu fundador. Ambição, coragem, intuição e obsessão pelo controle são traços frequentes entre aqueles que criam negócios do zero. Contudo, essa mesma energia criativa pode se transformar em um fardo, levando a empresas inteiras a crises profundas. Neste artigo, vamos dissecar como o perfil psicológico do fundador molda a cultura empresarial, os riscos de um ambiente centralizado, e como a governança pode equilibrar inovação e controle.
CULTURA DO FUNDADOR: O DNA INVISÍVEL – De Steve Jobs a Elon Musk, de Jorge Paulo Lemann a João Adibe, a figura do fundador carrega uma força simbólica e prática enorme. Essa cultura é o conjunto de rituais, crenças, hábitos de gestão e linguagem interna que define como a empresa pensa e age. Segundo Edgar Schein, um dos maiores especialistas em cultura organizacional, o fundador imprime valores profundos, que resistem mesmo à sua saída física da operação. Em empresas familiares ou em startups, essa presença é ainda mais marcante.
O LADO SOMBRIO DA LIDERANÇA: CASOS DE CULTURA TÓXICA – Recentemente, a Cacau Show tornou-se alvo de denúncias graves envolvendo práticas internas incomuns, conduzidas pelo fundador, Alê Costa. Rituais místicos com colaboradores, repressão a franqueados que discordavam da liderança e um clima de medo denunciam um ambiente onde a cultura do fundador se converteu em culto à personalidade. Quando não há freios institucionais, a figura do fundador se sobrepõe ao próprio negócio. Esse caso escancara o risco de organizações fundadas por líderes carismáticos, mas com traços autoritários e narcisistas sem limites claros.
PERFIS PSICOLÓGICOS DE FUNDADORES: NARCISISMO, OBSESSÃO E GENIALIDADE – Estudos como os de Michael Maccoby e Kets de Vries identificam o perfil do ‘líder narcisista produtivo’: alguém com capacidade de inspirar, mas também altamente controlador, egocêntrico e avesso a críticas. Fundadores com esse perfil tendem a se cercar de pessoas leais, e não competentes, criando zonas de conforto e silenciamento. A ausência de dissenso mata a inovação e mina a governança. O caso de Adam Neumann, da WeWork, é emblemático: sem filtros, ele levou a empresa de estrela do Vale do Silício ao caos financeiro, mesmo após aportes bilionários.
A FALÁCIA DA MERITOCRACIA: O CASO 3G CAPITAL – A cultura do 3G Capital, liderada por Jorge Paulo Lemann, aplicou a lógica da meritocracia agressiva em empresas como Ambev, Burger King e Kraft Heinz. O discurso de eficiência virou instrumento de pressão desumana. Metas inalcançáveis geraram manipulação de resultados, desgaste emocional e cortes drásticos em inovação. A Kraft Heinz perdeu metade de seu valor de mercado. O que parecia uma cultura de alta performance revelou-se uma espiral de cortes e colapsos — sem espaço para valores humanos ou visão de longo prazo. Um caso clássico de cultura tóxica embalada como excelência operacional.
CULTURA PROATIVA E ORIENTADA A RESULTADO: CIMED EM DESTAQUE – Na outra ponta do espectro está João Adibe, fundador da Cimed. A empresa cresceu de forma acelerada com foco em inovação, marketing agressivo e liderança descentralizada. A cultura da Cimed valoriza performance, mas também dá autonomia aos líderes e reconhece o valor das pessoas. A governança é sólida, com executivos experientes e conselheiros estratégicos. O fundador atua como embaixador da marca e líder inspirador — sem microgestão. O resultado: crescimento sustentável, reputação sólida e atração de talentos.
GOVERNANÇA E CONSELHOS: O ANTÍDOTO AO FUNDADOR TÓXICO – Empresas saudáveis possuem conselhos de administração ativos, com diversidade e independência. O papel do conselho é ser coach e freio. Fundadores precisam ser confrontados – com dados, com argumentos, com consistência. É preciso romper o ciclo de silêncio e criar espaço para o contraditório. Métodos como avaliação 360º, uso de DISC [metodologia comportamental a partir de quatro características: Dominância, Influência, Estabilidade e Conformidade] e feedback estruturado ajudam a mostrar ao fundador seus próprios pontos cegos. Em alguns casos, é necessário trazer um CEO profissional com liberdade de ação – desde que respaldado por governança forte. O fundador precisa aprender a sair da operação sem sair da missão.
GOVERNANÇA EM EMPRESAS FAMILIARES: O DESAFIO DA TRANSIÇÃO – Empresas familiares representam mais de 90% das empresas brasileiras, segundo o IBGE, e enfrentam um desafio crítico: a profissionalização da gestão sem romper com a cultura original. Quando o fundador decide ou é forçado a se afastar, a ausência de um plano de sucessão estruturado pode gerar conflitos, rupturas e perda de valor. Um estudo da PwC revela que apenas 30% das empresas familiares sobrevivem à segunda geração e menos de 13% chegam à terceira.
A presença de conselhos consultivos ou de administração é um dos principais fatores de sucesso na transição. Eles atuam como moderadores entre a família e o negócio, permitindo que a cultura fundacional seja respeitada, mas com adaptação às novas exigências do mercado. A governança, nesse caso, precisa equilibrar herança emocional e racionalidade corporativa.
CASOS INTERNACIONAIS: UBER, TESLA E THERANOS – O caso da Uber sob a liderança de Travis Kalanick mostra os extremos do poder fundacional. Visionário e agressivo, ele conduziu a empresa à disrupção global, mas ao custo de uma cultura tóxica, assédio e práticas antiéticas. Foi afastado pelo conselho após pressão dos investidores. Na Tesla, Elon Musk combina genialidade técnica com comportamentos erráticos – como tweets que afetam o mercado –, o que levanta debates sobre a eficácia da governança em lidar com fundadores-celebridade.
Já a Theranos, de Elizabeth Holmes, é um exemplo trágico de como o carisma do fundador, sem validação técnica e supervisão, pode enganar investidores e colocar vidas em risco. O caso expôs falhas brutais de conselhos complacentes e reforçou a importância de checks and balances na estrutura de startups lideradas por fundadores fortes.
MODELOS DE SUCESSÃO E EVOLUÇÃO CULTURAL – Empresas que superam a figura do fundador constroem modelos de sucessão com rituais, processos e símbolos claros. O Magazine Luiza, por exemplo, com Luiza Helena Trajano, é uma referência: sua transição para a segunda geração e posterior profissionalização foi feita com planejamento, formação de conselhos e separação clara entre gestão e propriedade. A cultura foi mantida, mas expandida com novos valores e práticas.
CONCLUSÃO: QUANDO O CPF SUFOCA O CNPJ – Toda cultura começa no topo. O fundador é o arquiteto da identidade da empresa. Mas essa identidade precisa evoluir. Fundadores que não se adaptam viram gargalos. Quebram empresas, sufocam times e repelem inovação. A solução não é excluir o fundador – é treiná-lo, coacheá-lo e cercá-lo de gente melhor. A cultura precisa de valores, mas também de processos. De inspiração, mas também de supervisão. No fim das contas, toda empresa que sobrevive além do ego de seu criador está mais próxima da perenidade.
ROBERTO VALVERDE
Conselheiro, M&A advisor e empreendedor. Após exit da empresa de mobilidade urbana que fundou, a Master Park, vendida para o fundo de Private Equity Pátria, atua como advisor de M&A em operações de venda e já transacionou mais de R$ 2 bilhões em deals. É conselheiro consultivo e de administração em diversos setores da economia, como transportes, saúde, indústria, consultoria, tecnologia, serviços e educação.
Fonte Oficial: https://agenciadcnews.com.br/artigo-por-roberto-valverde-a-ditadura-do-fundador-entre-o-genio-visionario-e-o-tirano-corporativo/