O mural de Di Cavalcanti, retratando operários em ação, que foi pichado durante a Virada Cultural, é muito mais do que uma superfície pintada. É um testemunho da arte moderna brasileira e da tentativa, típica do modernismo, de criar uma linguagem visual enraizada nas expressões populares, na vida urbana, nas raízes culturais do Brasil. Di Cavalcanti foi um artista que procurou retratar temas tipicamente brasileiros, buscando construir uma identidade nacional por meio da arte.
Quando uma obra como essa é pichada, precisamos olhar além do ato em si e perguntar: o que isso revela sobre a relação das pessoas com o patrimônio cultural? A verdade é que, sem educação patrimonial, sem políticas públicas que promovam o conhecimento, a vivência e o afeto com esses bens, uma obra de arte pública, mesmo assinada por um dos maiores nomes da história da arte brasileira, pode parecer apenas mais um muro vazio, uma superfície qualquer.
A pichação que atingiu o mural na Virada Cultural não é um ato isolado, é sintoma de um problema mais profundo: o desconhecimento generalizado sobre o valor histórico, artístico e simbólico dos espaços públicos. Se a população não sabe o que aquilo representa, se não há identificação, a obra deixa de comunicar. E o patrimônio que não é reconhecido como tal, simplesmente desaparece na paisagem.
O patrimônio não é algo que se impõe, ele se constrói a partir da relação que as pessoas têm com o que as cerca. E essa relação depende de reconhecimento, de identificação. O patrimônio precisa ser conhecido para ser valorizado. Se não há informação acessível, mediação cultural, ações contínuas de educação e cuidado, o patrimônio se desconecta da vida das pessoas. E aí ele perde seu sentido, vira invisível.
A pichação, nesse contexto, não pode ser lida apenas como vandalismo. É também uma forma de expressão, um gesto de quem tenta ocupar um espaço da cidade para ser visto, para existir. Mas quando essa marca apaga ou fere outra expressão, neste caso, uma obra que já carrega camadas profundas de significado histórico, artístico e simbólico, o que temos é um conflito entre sentidos não mediados. Isso revela a urgência de pensar políticas culturais integradas, que tratem o patrimônio como parte viva da cidade, e não como relíquia isolada.
É simbólico que isso tenha acontecido durante a Virada Cultural. Um evento que celebra a cultura em todas as suas formas. Talvez o que esse episódio nos mostra é que precisamos investir mais em processos de educação patrimonial contínuos, comunitários, que não sejam apenas informativos, mas transformadores. Que envolvam as pessoas na construção dos sentidos do patrimônio. Porque só há preservação quando há pertencimento. E só há pertencimento quando há escuta, diálogo e reconhecimento.
Por isso, precisamos urgentemente tornar o patrimônio visível, vivido, compreendido. Não basta preservar fisicamente. É preciso fazer educação, criar vínculo, dar nome e rosto aos autores, contar as histórias que aquelas obras carregam. O patrimônio só é patrimônio quando há identificação. E sem isso, nenhuma parede, por mais valiosa que seja para nossa cultura e história, vai resistir.
Criminalizar a pichação, e ficar inconformado com o que aconteceu é fácil. Difícil é educar, criar vínculo, cultivar o afeto e o reconhecimento com a própria cidade.
BRENDA LEITE
Gestora de Zeladoria do Patrimônio Cultural
ANTONIO SARASÁ
Diretor-executivo de Conservação e Restauro
FLÁVIA SUTELO
Diretora de Criação, Projetos Culturais e Zeladoria do Patrimônio Cultural
Fonte Oficial: https://agenciadcnews.com.br/muito-mais-que-uma-pintura/