Inaugurando meu espaço na coluna gostaria de discutir um tema importante de política econômica e que se mostrou de primeira grandeza com a deterioração do cenário econômico a partir de dezembro – não só a discussão do tema da dominância fiscal, mas, mais diretamente, a problemática da coordenação entre a política fiscal e monetária e os desafios que o novo presidente do Banco Central e sua equipe enfrentam em 2025 e anos vindouros. Vamos a ele.
Se olharmos, em retrospectiva, os 60 anos de existência do Bacen, poderíamos dizer que só houve duas coordenações entre política monetária e fiscal que podemos dizer bem estruturadas do ponto de vista de teoria econômica. A primeira delas foi o período da grande bonança internacional a partir de 2004 e que perdurou por quase uma década se incluirmos o período de juro internacional muito baixo do pós-crise financeira de 2008. A segunda bem-sucedida coordenação, falarei mais à frente, foi o período da pandemia de 2020 e 2021.
Com exceção desses dois períodos, três diferentes formatos de condução da política monetária perpassaram esses 60 anos: regime de câmbio fixo ou câmbio administrado, quando a política monetária é total ou parcialmente endógena; períodos de hiperinflação, quando a política monetária é totalmente refém do regime fiscal; por fim, mais recentemente, uma relação entre política monetária e fiscal não coordenada, utilizando para tal análise os conceitos de coordenação de Eric Leeper em seu artigo Equilibria under ‘Active’ and ‘Passive’ Monetary and Fiscal Policies. Analisemos, então, esses períodos recentes.
A partir do fim de 2014 e início de 2015 com a deterioração fiscal cavalar de quase 5 pontos percentuais do PIB, a necessária elevação de taxa de juros ajudou a impactar negativamente o resultado nominal e, por consequência, o patamar da dívida pública. A dívida líquida saiu de 30% do PIB para 40% até o momento da posse de Ilan Goldfajn, em maio de 2016 (ficou até fevereiro de 2019).
Nesse sentido, o fim do mandato de Alexandre Tombini (2011-2016) e início daquele de Goldfajn foram períodos em que a combinação déficit primário alto mais política monetária restritiva significou, utilizando a metodologia de Eric Leeper, políticas fiscal e monetária ativas.
Leeper nos mostra, em seu seminal artigo, que não há estabilidade de preços, equilíbrio estável dos mesmos, se ambas, política monetária e fiscal, atuarem de forma independente. Utilizando o seu próprio jargão – de forma ativa. Só há equilíbrio de preços, nos formatos ativa-passiva, ou vice-versa, passiva-ativa.
A coordenação tradicional é, logicamente, aquela onde a política fiscal faz sua tarefa de manter o controle sobre os gastos – em certa medida, um superávit primário capaz de fazer frente às despesas de juros, gerando um déficit nominal ‘razoável’ – possibilitando que a política monetária atue de forma ativa quando dos choques que afetam o patamar desejado de inflação. Em resumo, política fiscal passiva e monetária ativa.
Ao final do mandato de Goldfajn, com a inflação ancorada, a dívida líquida já atingia a casa dos 53% do PIB. Roberto Campos (2019-2025) assume e, no ano seguinte (2020) entrávamos na pandemia do coronavírus. Com ela tivemos um momento de coordenação invertida da política monetária e fiscal – política fiscal ativa e monetária passiva. Funcionou! E, graças a essa bem azeitada coordenação, nos salvamos do cenário de uma gigantesca retração econômica.
De todo modo, dada a extraordinariedade do momento, essa atuação nos custou mais 4 pontos percentuais na relação dívida líquida sobre PIB que atinge, em meados de 2021, 57% do PIB.
A partir de 2021, a coordenação se inverte – política fiscal passiva e monetária ativa, com uma forte contenção fiscal promovida por Paulo Guedes que perdura por um ano.
Com a campanha eleitoral, a partir de julho de 2022, rompe-se essa coordenação, quando temos, então, política fiscal e monetária ativas e a dívida líquida saindo de 56% para as atuais 62%.
O terceiro mandato de Lula inicia-se com a proposta de um novo arcabouço fiscal que prometia a submissão desta política frente a uma política monetária ativa, padrão de coordenação esperado.
Entretanto, com tamanho nível de incerteza, grandes ruídos vindos do Palácio do Planalto e as contínuas pressões fiscais e parafiscais na Terra do Nunca que se tornou Brasília, não faz muito sentido rotular tal política fiscal como passiva – estaríamos em uma política parapassiva, para, jocosamente, cunharmos um novo formato de política fiscal brasileira.
O cenário atual é, portanto, extremamente desafiador, tanto para a política monetária quanto para a a fiscal, dada a interdependência das ações de cada uma delas. A dose do juro afeta o fiscal, a dose do fiscal afeta o juro. É o dilema do ovo e da galinha. Neste caso, com grandes implicações para a percepção da solvência intertemporal da dívida pública.
Restaria torcer para uma bonança externa logo à frente, similar àquela de nossa primeira década deste século, evento que, sem sombra de dúvidas, nos aliviaria desta crise, como nos aliviou naquele período (resolver é outra história…). Baseando-se neste primeiro trimestre de 2025, esse não parece um cenário muito plausível. Pelo contrário.
Ricardo Meirelles de Faria
Mestre e doutor em economia pela Fundação Getulio Vargas (FGV), professor de macroeconomia e economia monetária da EAESP-FGV, editor do ITCV (Indicador de Tendência de Consumo e Varejo) do FGVcev (Centro de Excelência em Varejo) e economista da Linus Galena Consultoria Econômica.